domingo, 28 de dezembro de 2025

Brigitte Bardot, hoje cancelada, foi o olhar que devolve o desejo, FSP

 

São Paulo

Brigitte Bardotmorta aos 91 anos, não foi a primeira nem a segunda nem a terceira opção para viver Camille Javal, a mulher escanteada de "O Desprezo", filme lançado por Jean-Luc Godard em 1963. O que se conta é que Kim Novak, Sophia Loren e Monica Vitti estavam na fila, mas não puderam ou não quiseram abraçar o papel.

A atriz francesa Brigitte Bardot durante as gravações do filme 'O Desprezo', de Jean-Luc Godard, em 1963 - Marcello Geppetti/Divulgação

Não é preciso nem dizer que foi a chegada de mademoiselle BB que transformou a obra no que ela é, a mais sublime de toda a carreira do cineasta. Metade de todo o orçamento do longa, aliás, foi para o cachê da atriz, àquela altura já consagrada como o maior "sex symbol" do planeta, graças a "E Deus Criou a Mulher", rodado seis anos antes.

Godard pode até ter torcido o nariz de início, e diria, mais tarde, que só a escalou porque "fazia parte do pacote", mas não deixou de ironizar o fato de que tinha à disposição a figura mais desejada pelos homens. Em boa parte das cenas, ocultou suas famosas madeixas loiras debaixo de uma peruca morena e, numa piscadela debochada aos produtores que exigiam cenas mais tórridas —afinal, se tratava de Bardot—, a desnudou logo em sua primeira aparição.

"Vê os meus pés no espelho? Gosta deles? E dos meus joelhos, você gosta? E das minhas coxas? Dos meus ombros? E da minha cara? Toda?", ela pergunta ao marido, deitada de bruços, enquanto a câmera passeia por seu corpo para se demorar em seu fabuloso derrière, escancarado.

Nas mãos do mais metalinguístico dos diretores, a cena ganha múltiplas camadas. O que na superfície é erótico se torna um comentário sobre o próprio voyeurismo no cinema —de um olhar que se sabe cúmplice, que se exibe e se questiona.

A cena é também um resumo da inflexão que "O Desprezo" provocou na carreira da atriz. É como se, depois dele, ela deixasse de ser apenas vista e passasse a olhar de volta, o que selou seu afastamento de obras que apenas a tinham por objeto de fetiche e a pôs no coração da nouvelle vague.

No começo da trama, temos os dois personagens centrais, estirados num provável momento pós-sexo, pouco antes de tudo desmoronar. Michel Piccoli vive Paul Javal, autor de histórias detetivescas de qualidade duvidosa que é chamado a desenvolver o roteiro para uma adaptação cinematográfica de "Odisseia", de Homero, a ser filmada pelo lendário Fritz Lang, interpretado pelo próprio. Jack Palance faz Jeremy Prokosch, o truculento produtor americano que o contrata.

As coisas desandam no casamento de Paul quando Camille, sua mulher, passa a desconfiar que ele não a valoriza. Nem sequer teme a deixar a sós com o macho alfa Prokosch. Nos 103 minutos seguintes, veremos o marido se apequenar, se emascular diante dela. É o desprezo do título que toma conta. A certa hora, ele indaga por que a moça parece tão pensativa. "Acredite ou não, eu penso. Isso surpreende você?", ela retruca, insinuando que não cabe no papel de esposa-troféu.

Tudo culmina no terço final do longa, ambientado numa deslumbrante casa de veraneio em Capri, na Itália, sobre rochas tão dramáticas quanto as curvas de Bardot. Lang e o produtor americano não parecem se entender sobre o que leva Ulisses, protagonista de "Odisseia", a empreender a viagem a Troia. O último defende de maneira ardorosa que o estopim é a infidelidade de Penélope, casada com o herói helênico. Quando Paul parece endossar essa versão, Camille se enfastia de vez e ruma ao desfecho trágico.

"O Deprezo" é o filme mais linear, mais quadrado de Godard, com uma narrativa claramente delimitada por três atos. Ainda assim, como de costume na obra do cineasta franco-suíço, a trama é só uma moldura. Ele reflete sobre o embate entre arte e comércio no cinema, que ocorre dentro e fora das telas, e põe no liquidificador boa parte do cânone ocidental, como mitologia grega, o movimento romântico, a contracultura, o expressionismo alemão e a era das celebridades.

Não à toa, opõe as duas tradições herdeiras —a europeia (personificada por Lang) e a americana (encarnada por Prokosch)— para duelar em torno de como interpretar a certidão de nascimento dessa civilização, isto é, a obra de Homero.

Tudo isso recai sobre um drama puramente doméstico, uma crise conjugal em meio à turbulência da revolução dos costumes dos anos 1960, das quais os próprios Godard e Bardot foram alguns dos principais motores. O curioso é que nos anos seguintes, os dois, artista e musa, se radicalizaram em direção a polos opostos.

Ele abraçou causas da esquerda, flertou com o maoísmo, simpatizou com os norte-vietnamitas que lutavam contra o Exército americano e ficou cada vez mais hermético, filmando até seus últimos dias, aos 91 anos.

Ela largou o cinema pouco antes de completar 40 dizendo que queria "sumir com elegância", aparecendo no noticiário apenas quando bradava contra imigrantes, muçulmanos, judeus, gays ou apoiava ultradireitistas como Jean-Marie Le Pen. Agora, em tempos de ultrassensibilidade "woke", Bardot sai de cena pintada como um monstro, a bela que virou fera por causa de suas posições políticas.

Mas é só rever esse que é o único filme que BB fez com Godard e congelar diante do olhar que ela por vezes lança para a câmera para entender por que o longa se tornou peça central da história do cinema. A todo o resto, o desprezo.

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