segunda-feira, 29 de dezembro de 2025

Enquanto famílias enfrentam emergências climáticas, moradia segue fora da agenda social, FSP

 

Camila Jordan

Diretora de Relações Institucionais e Incidência da TETO Brasil

O Brasil discute inclusão produtiva, educação, clima, juventudes e inovação. Mas evita, de forma quase sistemática, falar sobre o que torna qualquer outra política possível: um lugar digno para viver.

Nas últimas semanas, os novos dados do Bisc (Benchmarking do Investimento Social Corporativo) de 2025 e do Censo Gife (2024-2025) confirmaram aquilo que quem trabalha diariamente nos territórios já sabe: moradia e habitação seguem entre as áreas menos financiadas pelo investimento social privado, aparecendo apenas como tema residual.

Enquanto isso, quase metade das organizações atua em territórios vulnerabilizados —favelas, periferias, ocupações— sem reconhecer que ali o problema estruturante que atravessa todos os outros é justamente a ausência de políticas habitacionais. É um paradoxo doloroso: atuamos onde a violação é mais profunda, mas evitamos encarar as suas causas mais gritantes.

Cinco pessoas vestindo camisetas brancas trabalham na construção de uma passarela de madeira sobre solo lamacento e alagado, cercado por vegetação alta e árvores ao fundo.
Voluntários da Teto Brasil participam da construção de moradias. A organização atua em parceria com comunidades para enfrentar o déficit habitacional e a precariedade urbana - Divulgação

Há tempos que escrevo que a crise climática no Brasil não é um debate abstrato: ela chega pela porta da frente, ou pior, pela porta e pelo teto. Nas enchentes do Rio Grande do Sul, nos deslizamentos da Serra, nas ondas de calor da Zona Leste de São Paulo, a primeira pergunta que as famílias que compõem o déficit habitacional fazem é sobre a sobrevivência. É sobre a sua casa ou falta dela.

Mesmo assim, os relatórios mostram que apenas 5% das organizações atuam em assentamentos urbanos, e que investimentos diretos em moradia são praticamente inexistentes. O setor privado investe mais em apoio emergencial do que em soluções estruturantes. Doa cestas básicas após a tragédia, mas não participa da discussão sobre por que aquela tragédia se repete ano após ano. E ela se repete porque a casa segue fora da agenda.

Disso não preciso que os relatórios me contem, porque a TETO Brasil vive isso recorrentemente após cada tragédia. Somos chamados por municípios, comunidades, favelas, outras organizações sociais, mas depois recebemos respostas como esta: "Infelizmente, não vamos poder apoiar na construção de moradias emergenciais, vamos doar móveis." Ao que eu me pergunto em silêncio: "E as famílias desabrigadas vão colocar os móveis onde?"

Essa ausência não é neutra: ela produz consequências políticas. Quando o investimento social evita a moradia, reforça a ideia de que favela é exceção, não cidade. Mantém milhares de famílias confinadas ao improviso, e transfere às comunidades, sempre às comunidades, a responsabilidade de construir as soluções que o Estado não entrega.

É o que vemos todos os dias na TETO Brasil: a potência, a criatividade e a união que emergem quando o privilégio de dormir uma noite seca, tranquila e segura é restituído, quando a emergência habitacional é sanada. Mas potência não pode ser confundida com obrigação.

Em um país que urbanizou rápido demais e entregou soluções habitacionais e urbanas de menos, a moradia marca o destino social de uma pessoa antes mesmo que ela nasça. Determina acesso à saúde, educação, distância até o trabalho, exposição a riscos climáticos, tempo perdido no transporte, oportunidades e horizonte de futuro.

Nas palavras que já escrevi antes: a casa deve ser a primeira política pública. Quando ela falha, todas as outras falham junto.

O setor privado precisa reconhecer isso com seriedade. Clima, juventudes, desenvolvimento comunitário e inclusão produtiva, agendas que recebem atenção significativa, não se sustentam sem um território seguro onde as pessoas possam viver, trabalhar e imaginar o amanhã.

Não existe adaptação climática sem casa. Não existe desenvolvimento comunitário sem permanência.
Não existe inovação sem dignidade. Não existe país sem enfrentar a emergência habitacional.

Os dados mostram um campo ainda tímido. Mas mostram também oportunidade. Moradia aparece como uma das áreas com maior potencial de transformação via co–investimento, justamente porque está subfinanciada. Há espaço para liderar, inovar e criar alianças capazes de reposicionar a habitação como eixo estratégico das políticas sociais e climáticas do país.

Homem agachado crava barra de ferro em buraco no chão de terra e pedras, próximo a um rio. Outras duas pessoas estão em pé ao lado, com roupas casuais e luvas, em ambiente externo com vegetação ao fundo.
A ONG mobiliza voluntários em diferentes regiões do país para ampliar o acesso à moradia digna - Divulgação

O Brasil não supera desigualdades sem olhar para o lugar onde elas se materializam: o território. E todo território começa pela casa e depois se expande. O que falta não é diagnóstico. Não é capacidade técnica. Não é a falta de recursos financeiros.

O que falta é coragem, a mesma coragem que vejo todos os dias nas comunidades que como sociedade insistimos em não ver. Está na hora de mudar a lógica e investir em moradia e infraestrutura urbana. Já dizia o ditado, sem uma base sólida, a casa cai.


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