Jesus existiu? Essa pergunta, hoje, não é só ultrapassada, ela é cafona. Até o século 19, existiam autores que tentaram pôr em dúvida a existência histórica de Jesus Cristo, mas, hoje, ninguém sério mais faz isso.
Claro que uma coisa é você saber que houve um judeu chamado Jesus no período do segundo templo de Jerusalém, no qual a Israel antiga estava sob o domínio romano. Outra é você crer que ele ressuscitou. Este relato já não faz parte do conjunto de evidências que sustentam a existência histórica de Jesus de Nazaré.
Por outro lado, narrativas como aquela em que o discípulo cético Tomé pede a Jesus que mostre a ele suas chagas para que ele as toque, a fim de provar que Jesus havia voltado da morte com seu próprio corpo, é orgânica com o conjunto de crenças judaicas da época.
Para os judeus, vencer a morte era voltar dela com o corpo —e não apenas vagar por aí como uma alma penada. Espíritos de mortos vagando no mundo tinham em toda esquina. Quem criou essa narrativa conhecia esse conjunto de crenças da época.
A fortuna crítica sobre Jesus é vastíssima e de alto nível. Para quem estuda religiões, é sabido que o substantivo "religião" tem vários sentidos. Por exemplo, religião é uma coisa para uma senhorinha católica que reza o terço e vai à missa. É outra coisa para o rabino estudioso e responsável pela vida espiritual de uma comunidade judaica. E ainda outra para um estudioso do fenômeno histórico que costumamos chamar de religião para facilitar o entendimento entre nós.
Em português, temos alguns volumes excelentes sobre o personagem histórico e o seu contexto social, político e espiritual.
O livro "Jesus Fora do Novo Testamento: Uma Introdução às Evidências Primitivas" de Robert R. Van Voorst, da editora Biblioteca Teológica, é rico no tratamento do personagem histórico Jesus a partir de fontes clássicas, judaicas, canônicas e pós-canônicas.
O livro "Jesus", do historiador israelense David Flusser, pela editora Perspectiva, é indispensável. Entre outras características, um dos eixos argumentativos centrais é a constatação de que o que está descrito nos evangelhos sinóticos —Marcos, Mateus e Lucas— é historicamente consistente com a época, seja em suas estruturas de poder dentro da sociedade israelita de então, seja no tocante ao ensino de um judeu típico da sua época, como era Jesus.
Aquele mais tarde chamado de "O Cristo" —o ungido—, ao contrário do que muita gente pensou e pensa por aí, era um judeu "liberal" que nunca pensou em inventar nenhuma religião nova.
Vale lembrar que, naquele tempo, o judaísmo era uma religião como qualquer outra. Isto é, qualquer um poderia se tornar judeu sem toda a questão da linhagem matrilinear tão conhecida atualmente. A rigor, a ideia de partida era trazer novos convertidos para o messias judeu recém-chegado.
Outro fator importante é que o termo "o Cristo", ou "o ungido", era uma categoria política. Por isso, os romanos olhavam com desconfiança —ungido era o rei de Israel, visto naquele momento como um possível inimigo do imperador. Não foi à toa que colocaram na cruz, em forma de deboche, que Jesus era o rei dos judeus.
Outro título, esse escrito por especialistas do Brasil na área, é o volume "Jesus de Nazaré: Uma Outra História", da editora Anna Blume, com apoio da Fapesp, organizado por André Leonardo Chevitarese, Gabrielle Cornelli e Mônica Selvatici. Distante de qualquer tratamento teológico ou movido pela fé, a coletânea traz um olhar "outro", ou mesmo "estranho", para o personagem histórico antigo, o "homem divino da Galileia".
Um volume essencial que temos traduzido no Brasil é "O Jesus Histórico: Um Manual", organizado por Gerd Theissen e Annette Merz, pela editora Loyola. Este volume enfrenta todos os campos de estudos acadêmicos sobre a figura histórica de Jesus: as fontes cristãs e não cristãs, a avaliação dessas fontes, o contexto da época, as relações políticas, as diversas figuras do Cristo, o messias judeu para alguns, herege para outros, o curador de doenças e milagreiro, o profeta, o líder político, o rebelde, o mestre de sabedoria, o Jesus histórico como fonte da cristologia nos primórdios do cristianismo.
Há estudos também da igreja primitiva em tradução no Brasil, como os três volumes magistrais de James D. G. Dunn, "O Cristianismo em seus Começos", pela editora Paulus.
Enfim, Jesus não é só um objeto de fé, ele é um campo acadêmico de estudos de peso, que exige uma vasta erudição e muito folego. Um campo atravessado por polêmicas ricas, estimulantes e intermináveis.

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