terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Jay Kelly: o preço de viver como imagem, de miscelana.com/

 Tenho uma certa preguiça de filmes de Hollywood sobre Hollywood. A indústria é tão autocentrada que esse tipo de narrativa costuma vir com manual de instruções embutido: a crise do astro, a nostalgia da era de ouro, o espelho rachado da fama. Mesmo quando o diretor é Noah Baumbach e o elenco reúne nomes como George Clooney e Adam Sandler — ambos já circulando com força nas apostas para o Oscar 2026 — o ceticismo é quase automático. Eu esperava um filme elegante, competente, previsível. Me enganei.

Jay Kelly é, antes de qualquer outra coisa, um filme profundamente sensível. Talvez seja a trilha de Nicholas Britell (Succession), que acompanha cada movimento do protagonista como um eco emocional, nunca invasiva, sempre melancólica. Talvez seja o roteiro assinado por Baumbach com Emily Mortimer, que escapa do cinismo fácil e escolhe um caminho mais humano, quase pudico, para falar de fama, memória e identidade. Ou talvez seja simplesmente o conjunto: um filme que confia no tempo, nos silêncios e nos atores. Seja como for, Jay Kelly é um belo filme.

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Clooney interpreta um astro de cinema que parece viver o ocaso de um modelo que já não existe mais. Jay Kelly não é um homem em queda livre — ele continua famoso, desejado, reverenciado — mas é alguém que começa a perceber que construiu toda a sua identidade sendo visto. O problema é o que sobra quando o olhar externo deixa de bastar. Jay não sabe exatamente quem é fora da imagem pública; suas memórias, seus afetos e até seus arrependimentos parecem organizados como cenas de um filme. Não por acaso, o personagem vive o presente como se estivesse sempre atuando.

A narrativa acompanha alguns dias decisivos na vida de Jay: a morte de um mentor fundamental, encontros inesperados com figuras do passado, o desejo mal resolvido de se reaproximar das filhas — especialmente da mais jovem, prestes a sair de casa — e uma viagem à Europa que funciona quase como uma travessia mental. Baumbach estrutura o filme como um mosaico: lembranças, deslocamentos e conversas que parecem desconectadas à primeira vista, mas que vão compondo um retrato preciso do vazio emocional de alguém que passou a vida inteira sendo amado por milhões e falhando sistematicamente nos vínculos mais íntimos.

Adam Sandler é o coração silencioso do filme. Seu Ron, o empresário e amigo de longa data, foge completamente do estereótipo do manager predatório. Ele ama Jay, acredita genuinamente no impacto dos filmes do amigo sobre o público e, ao mesmo tempo, vive uma vida própria, com esposa, filhos e escolhas que Jay nunca foi capaz de sustentar. É uma atuação de enorme delicadeza, talvez uma das melhores da carreira de Sandler, porque revela algo incômodo: no fim das contas, é Ron quem parece inteiro. O astro é Jay, mas o ser humano mais completo ali é o homem que vive à sua sombra.

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Nos bastidores, o filme carrega muito de Noah Baumbach refletindo sobre o próprio meio em que sempre esteve inserido. Mas o tom é diferente de uma sátira agressiva ou de uma autocrítica ruidosa. Jay Kelly é quase um lamento suave por uma era que está acabando: a do astro capaz de sustentar um filme sozinho, movido a carisma e presença. O plano-sequência inicial, que percorre um set em funcionamento, já sinaliza isso, uma espécie de despedida da engrenagem clássica do cinema, filmada com respeito e melancolia.

A crítica internacional recebeu o filme exatamente por esse viés: menos interessado em expor os vícios de Hollywood e mais em examinar o custo emocional de uma vida vivida sob demanda permanente. Muitos textos destacam a estrutura fragmentada, que nem sempre “fecha” de forma tradicional, mas que reflete com precisão o estado mental do protagonista. Outros ressaltam como Clooney usa sua própria imagem pública — o charme, a elegância, o status de “último astro clássico” — para construir algo vulnerável e até doloroso. A sensação recorrente é de que o papel funciona como uma soma de carreira, sem soar autocelebratório.

Na temporada de prêmios, Jay Kelly começa a se posicionar com elegância. Clooney surge como nome forte em Ator, Sandler aparece com consistência nas conversas de coadjuvante, Nicholas Britell desponta na trilha sonora e Baumbach volta ao radar de roteiro e direção. Não é um filme “barulhento” de campanha, mas exatamente o tipo de obra que vai ganhando força pelo boca a boca crítico, um favorito tardio, mais emocional do que estratégico.

No início de Jay Kelly, antes mesmo de qualquer imagem se impor, o filme se anuncia com uma frase de Sylvia Plath retirada de seus diários, não um poema, mas um pensamento cru, íntimo: “É uma responsabilidade infernal ser você mesmo. É muito mais fácil ser outra pessoa ou não ser ninguém.” A escolha não é gratuita. Ela funciona como chave de leitura para tudo o que vem a seguir.

Jay passou a vida inteira sendo alguém para os outros. Um rosto, um nome, um conjunto de gestos que pertencem tanto ao público quanto a ele mesmo. Suas memórias se organizam como cenas, seus afetos como papéis mal ensaiados, e o presente como uma atuação contínua. Quando o filme se aproxima do final, o que está em jogo já não é redenção nem queda, é a compreensão tardia de que sustentar uma identidade construída para o mundo exige um preço alto demais.

Jay Kelly não julga seu protagonista, nem transforma Hollywood em vilã absoluta. Observa, com melancolia e humanidade, o vazio específico de uma vida vivida sob o olhar constante. No fim, Baumbach parece sugerir que há algo particularmente solitário nessa forma de existência: quando todas as suas memórias viram performance, ser você mesmo passa a ser o papel mais difícil de todos.

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