domingo, 5 de novembro de 2023

Fósseis e mais fósseis, Editorial FSP

Rostos humanos esculpidos em pedra
Registros rupestres encontrados em Urucará (AM) - Estanislau Mendes Marinho Junior

As mudanças climáticas produzem cada vez mais evidências de sua realidade, pondo por terra questionamentos. A maioria delas envolve danos para o ambiente e populações, mas em poucos casos —como os da arqueologia e da paleontologia— podem trazer bônus.

Considere-se o aflorar de gravuras rupestres antes submersas em rios amazônicos. Não fosse a seca extrema que transformou rios caudalosos como o Negro e o Solimões em bancos de areia, a ciência teria pouca chance de reconstituir algo desses povos que ocuparam a região há milhares de anos.

Verdade que as gravações em rocha reveladas pelo recuo das águas em Ponta das Lajes, Manaus, já haviam aparecido na estiagem de 2010. Não foi esse o caso, porém, das inscrições surgidas em Urucará, quando o rio Uatumã baixou.

Em Anamã (AM), o sítio Costa da Goiabeira deu à luz urnas funerárias. Perto de Tabatinga, na fronteira com Peru e Colômbia, ruínas do forte português São Francisco Xavier, do século 18, foram desnudadas pelo Solimões esquálido.

Não há motivo para quase nenhuma comemoração. O ganho de conhecimento empalidece diante da tragédia que o fenômeno acarreta para ribeirinhos, que dependem do rio e da fauna que o habita.

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No campo da investigação acadêmica do passado humano e biológico, de todo modo, cabe algum regozijo com a dádiva duvidosa do aquecimento global. Não só no Brasil, nem apenas para a arqueologia, mas também a paleontologia.

A primeira disciplina estuda vestígios de sociedades e já se beneficia com o derretimento de geleiras, por exemplo, desde 1991. Naquele ano, encontraram-se nos Alpes os bem preservados restos mortais de um homem que ali vivera 5.600 anos antes, apelidado Ötzi.

Na Escandinávia, o gelo castigado pelo aquecimento vem fornecendo armas, trenós e roupas do Império Romano e da Idade Média.

Paleontólogos também são agraciados com fósseis surgidos a partir do derretimento de geleiras do permafrost (solo congelado) —como o filhote de mamute mumificado descoberto no Canadá.

São benesses isoladas da portentosa perturbação do clima global produzida pela queima de combustíveis —note-se a ironia— fósseis. Sem medidas efetivas para arrefecer o aquecimento, talvez arqueólogos e paleontólogos um dia escavarão os vestígios da civilização planetária que erodiu as bases de sua própria manutenção.

editoriais@grupofolha.com.br

 

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