sábado, 25 de novembro de 2023

ESTADÃO / ALIÁS Baldeação radical


Por Álvaro Puntoni

23/08/2009 | 01h51

3 min

de leitura

.A decisão pela opção rodoviarista nos anos 50 e o consequente abandono da estrutura ferroviária pré-existente desenharam o País - desde sua atual ocupação territorial até a qualidade dos espaços urbanos de nossas cidades como os conhecemos. Imaginar um país diferente deste ou mesmo projetar outro é uma decisão que temos que tomar agora para evitar um desastre maior. Foi suprimida de nossa memória ou subtraída de nosso futuro (pelo menos até o momento) a graça de um território provido de rede ferroviária que permitisse integrar de forma eficiente e perene suas diferentes regiões, assim como os diversos sistemas de transporte (hidroviário, rodoviário e aeroviário), assegurando a todos a possibilidade de se deslocar de forma adequada pelo território. Uma linha ferroviária, vista a partir de uma plataforma de gare, é uma garantia de ligação com outro lugar, mas, simultaneamente, representa a ilimitada possibilidade de rumos a seguir, ou seja, infinitos destinos. É ligação física e ao mesmo tempo mental, uma sensação de que se pode chegar a qualquer local que se desejar.Cruzar o espaço com conforto e segurança, desfrutando da paisagem e de uma boa leitura, partir e chegar aos centros das cidades, ter a capacidade de planejar o próprio deslocamento com alguma precisão deveriam ser direitos inalienáveis de todo brasileiro. Conceber, por exemplo, a possibilidade de um paulistano tomar um trem na Estação da Luz e descer no centro de Salvador, às margens do Amazonas ou, até mesmo, em Santiago do Chile é algo que não nos pertence. Imaginar as cidades passadas e paisagens deslocadas nesses trajetos imaginários, longos sem dúvida, é quase um devaneio, mas que foi plausível há 50 anos e drasticamente arruinado por uma opção desastrada.Deve ser também considerada a questão do transporte de carga e mercadoria, quase que integralmente rodoviária, maltratando as nossas já descuidadas e perigosas rodovias, praticamente nosso único meio de transporte se levarmos em conta os preços praticados pelas companhias aéreas. Um sistema ferroviário eficiente permitiria aliviar as rodovias, além de garantir custos menores de transporte de carga.Nesse quadro deve-se inserir a discussão acerca do trem de alta velocidade de ligação entre São Paulo e Rio: uma possibilidade real de rever um dos elementos estruturadores e fundamentais da nossa ocupação territorial e, portanto, da nossa existência neste lugar. Para que se efetive essa proposta, eventuais impactos ambientais e urbanos devem ser discutidos e dirimidos, mas não podem, em princípio, ser obstáculos à realização do empreendimento. A inteligência da engenharia e da arquitetura está aí para solucionar essas questões, para conciliar o convívio entre a linha férrea e a vida cotidiana das cidades. Os países centrais do capitalismo, mesmo sendo os principais artífices da indústria automobilística, não abandonaram suas redes ferroviárias. Pelo contrário. O trem convive com a cidade de forma indeclinável e serena. Trens ligam cidades e países, atravessam mares e montanhas, do Ocidente ao Oriente. Trens de alta velocidade cruzam parques urbanos em trincheiras, passam por áreas povoadas em túneis ou se elevam para preservar santuários ambientais.No caso desse projeto, está se discutindo a passagem subterrânea do trem em trechos urbanos, o que reduziria sensivelmente o impacto nas cidades. Um aspecto importante é a localização das estações nos núcleos urbanos (sejam os terminais ou de passagem), considerando que representarão novas centralidades e elementos de (re)estruturação, de modo que não podem ser realizados de forma descuidada e desarticulada. Devemos rever a incapacidade histórica de nossos governos de não optar de maneira resoluta pelo mais correto e preciso, mas retrair-se e resignadamente fazer somente o possível, quando deveria ser o contrário. Em vez de desapropriar a área mais adequada para instalação dos equipamentos essenciais ou da infraestrutura, opta-se pela área vazia e já pública. Vejam o caso de nossos parques e praças recortados por escolas e terminais, quando deveriam ser somente espaços públicos livres. Não deveríamos medir esforços, neste momento, de induzir transformações urbanas significativas e, portanto, promover intervenções em áreas consolidadas. Essa iniciativa, mesmo que pontual, representa a possibilidade de um novo olhar para a questão e, quem sabe, a inauguração de um novo entendimento sobre o caminho que podemos seguir, literalmente, em todos os sentidos. O futuro é algo que se desenha hoje. *Professor da FAU-USP e da Escola da Cidade, da qual é sócio fundado

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