No brechó de parede verde-água decorada com peças de arte e uma calcinha emoldurada –foi presente do cantor Wando (1945-2012)–, a proprietária Márcia Tavares, 55, diz estar preocupada com as escavações bem ao lado. "Acho que já tiraram todo o chão", comenta.
Uma torre com 21 andares e apartamentos de até R$ 4 milhões subirá colada à Galeria Flórida, onde fica a loja da ex-fotógrafa de moda e celebridades, no trecho da rua Augusta que liga a avenida Paulista aos Jardins, na zona oeste de São Paulo. "Se eles fizessem uma proposta [pelo espaço], acho que eu toparia vender", diz, rindo.
Ela sabe que galerias não estão entre os imóveis mais cobiçados pelas incorporadoras. Seria difícil negociar com cada um dos donos de lojas e salas, dizem comerciantes locais. Em vez disso, as empresas compram galpões e sobrados que, colocados abaixo, darão lugar aos novos empreendimentos.
De olho na chance de conseguir bons preços por imóveis muitas vezes mal conservados, proprietários buscam dispensar os locatários. Para isso, sobem preços de aluguéis. Com lojas desocupadas, desfazem-se de amarras contratuais e facilitam a venda. O aluguel caro tende a desestimular comerciantes a exercerem o direito de renovação da locação.
Exemplo concreto é o casario com meia dúzia de portas fechadas e placas de locação, onde só resiste o restaurante especializado em comida havaiana do chef Gabriel Jorge Fernandes, 30. A família dona dos sobrados já avisou que não renovará o contrato com o locatário.
"Na pandemia, o comércio local foi sendo expulso pela falta de demanda. Depois, os imóveis não foram mais alugados. Percebi que o pessoal parou de alugar e passou a vender os espaços", relata Fernandes, que está de mudança para um ponto na mesma via. "É muito triste ver a Augusta assim."
A expansão imobiliária é só uma das causas do fenômeno que reúne no mesmo lugar uma explosão de empreendimentos e a notória decadência do comércio. Diferentes motivos explicam as dezenas de placas de "aluga-se" fixadas em portas de aço.
Bruno Miranda, 34, é coordenador de uma administradora que tem um imóvel vago há mais de três anos no local. "Realmente há situações na Augusta em que o proprietário prefere deixar o imóvel vazio para facilitar a venda, mas no nosso caso, o problema é o IPTU muito alto, que deixa o aluguel caro", conta.
O tributo municipal é calculado com base no valor do imóvel e a chegada das construtoras é mais um elemento a inflacionar o custo da locação. O aluguel também reflete a valorização da propriedade, explica o especialista em mercado imobiliário Daniel Sznelwar.
"Se compram um imóvel do lado do meu e fazem um prédio para pessoas com maior poder aquisitivo, o comércio pode ter uma margem maior. Da mesma forma, o imóvel vale mais", diz Sznelwar.
Se por um lado há motivos para o aluguel subir, por outro, a diminuição da circulação de pedestres após a pandemia e a ausência de lugares para parar carros –estacionamentos também estão dando lugar a prédios– reduziram a atratividade dos pontos comerciais.
Sinais da transformação pela qual a cidade passa e contra a qual há pouco o que se possa fazer, explica Roberto Mateus Ordine, presidente da Associação Comercial de São Paulo.
Ordine explica que a decadência da Augusta teve início muito antes da atual expansão imobiliária, pois está relacionada à chegada dos shoppings centers no final dos anos 1960. "Os consumidores mudaram de hábito, passaram a comprar em locais com mais comodidade e segurança", diz.
Com a migração do consumidor com mais dinheiro para os centros de compras, butiques deram lugar a um comércio com produtos de baixo valor agregado.
Quanto à atual transformação, há tendência de redução dos comércios populares. Serão substituídos por prestadores de serviços, como lavanderias, academias e clínicas voltadas à estética e bem-estar, prevê Ordine. "Com algumas diferenças, essa transformação já aconteceu no outro lado da Augusta, que liga a avenida Paulista ao centro", compara.
Quem resiste busca adequação à nova realidade. É o que fez o restaurante gerenciado por Vando Moreira, 54, obrigado a se mudar para um salão menor quando o locador vendeu o imóvel para uma construtora. "Tivemos que sair para o dono demolir", conta.
Apesar de mais apertado, o novo estabelecimento, na mesma calçada, tem aluguel de R$ 20 mil por mês, quase o dobro do anterior. "Está muito caro. É por isso que tem muita gente saindo daqui", diz Moreira, que cobra R$ 26 o prato-feito, com opções como picadinho, frango à passarinho e fígado.
Dono de uma papelaria, Dearo Germinari, 59, compensa a ausência de compradores presenciais com os milhares de clientes que atende por Whatsapp. Mas isso não compensa a falta que faz a Augusta viva. "Uma rua que era maravilhosa há 14 anos, quando cheguei, está agora parecendo um cemitério, com tantos prédios e ninguém andando nas calçadas."
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