Existe um Judiciário que se une e outro que se fragmenta; um que se destaca em uma história heroica de resistência, outro que protagoniza uma trama infame de regalias; um que defende a democracia e combate a pandemia, outro que abusa das leis e fragiliza o Estado de Direito.
O primeiro está retratado no recém-lançado "O Tribunal – Como o Supremo se uniu ante a ameaça autoritária" (Companhia das Letras), de Felipe Recondo e Luiz Weber.
O segundo aparece no recém-publicado "O Discreto Charme da Magistocracia – Vícios e disfarces do Judiciário brasileiro" (Todavia), de Conrado Hübner Mendes.
Não que inexistam críticas num caso e elogios no outro. Recondo e Weber, com foco no STF (Supremo Tribunal Federal), apontam problemas tanto nas decisões como nas atitudes dos ministros, enquanto Conrado lembra que o sistema de Justiça não se faz apenas de defeitos.
Mas, no recorte de "O Tribunal", o que se procura é narrar a trajetória de uma corte que abandonou muitas de suas divergências internas para enfrentar a ameaça externa representada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL).
Os jornalistas Recondo e Weber baseiam-se em centenas de entrevistas feitas ao longo dos últimos cinco anos para revelar bastidores de eventos decisivos no período, como os julgamentos na pandemia da Covid, a instauração do inquérito das fake news e a reação aos ataques de 8 de janeiro.
"Quando Bolsonaro foi eleito, nós percebemos que havia algo a ser acompanhado: como o tribunal lidaria com aquele presidente que prometia uma relação [com o STF] muito diferente da que os outros estabeleceram?", diz Recondo.
A resposta demorou a ganhar contornos uniformes. A princípio, prevalecia no Supremo a percepção de que Bolsonaro seria neutralizado pela ação das instituições, ou então que ele não levaria adiante suas promessas de interferir no Judiciário.
Quem parece ter levado essa posição ao paroxismo foi Luiz Fux, presidente do STF de 2020 a 2022. Em "O Tribunal", fica-se sabendo que ele via um problema somente no entorno de Bolsonaro, que "ouve as pessoas erradas e acaba chutando o balde".
Mas nem todos acreditavam nisso. Segundo os autores apuraram com pessoas do convívio de Alexandre de Moraes, o atual presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) fez a seguinte avaliação em conversas privadas: "Os ministros achavam Bolsonaro burro, e eu também, mas nunca o subestimei".
Em junho de 2020, a situação tinha mudado. À exceção de Fux, os demais ministros já consideravam Bolsonaro uma ameaça concreta, e vários deles liam com atenção livros sobre o enfraquecimento da democracia mundo afora e a nova configuração dos golpes de Estado, que dispensam o recurso a tanques nas ruas.
Naquele mês, o STF deu uma clara demonstração de unidade ao aprovar, por 10 a 1 (voto vencido de Marco Aurélio), o polêmico inquérito 4.781, voltado à investigação de fake news e ameaças à corte e seus integrantes.
Daí em diante, sobretudo nas ações sobre políticas de combate ao coronavírus, o Supremo se apresentou como um bloco coeso, com decisões que contrariavam Bolsonaro.
Em paralelo, ministros do STF mantiveram contatos frequentes com a cúpula militar –em particular, com o Alto Comando do Exército— para sondar o ânimo da caserna diante de um golpe.
"O Tribunal" indica que foi essa aproximação que deu aos ministros a força necessária para dobrar a aposta diante das situações mais tensas, pois os ministros sabiam que os generais não apoiariam uma aventura tresloucada.
Edson Fachin, por exemplo, após assumir a presidência do TSE, em dezembro de 2021, enviou emissários para saber a disposição dos comandantes das regiões e descobriu que nenhum deles partilhava dos planos contra as urnas eletrônicas.
Percebendo que pisava em terreno seguro, Fachin decidiu, em maio de 2022, deixar de lado a diplomacia com o então ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira, parou de responder perguntas impertinentes sobre as urnas e afirmou que a eleição era assunto das forças desarmadas.
Mais tarde, Moraes, já na presidência do TSE, tampouco mediu palavras em conversa privada com o ministro da Defesa. Diante de questionamentos de Nogueira sobre possibilidade de ser instalado programa espião em todas as urnas, Moraes rebateu: "Ô, Paulo Sérgio, pode ser que caia um meteoro e destrua a Terra. Tenha a santa paciência", conta o livro.
Essas gestões, contudo, não levaram o STF a antever o duro ataque de 8 de janeiro, e "O Tribunal" mostra como a então presidente Rosa Weber fez questão de garantir uma reação institucional unitária de uma corte que, poucos anos antes, atuava quase sempre como 11 ilhas independentes.
E é justamente "Onze ilhas" o título de um artigo que Conrado Hübner Mendes publicou em 2010 e que agora abre seu novo livro, uma coletânea de 88 textos veiculados na imprensa, sobretudo na revista Época e na Folha, jornal do qual é colunista desde 2019.
"O conjunto oferece um repertório descritivo e analítico bastante didático para problematizar o Poder Judiciário, os juízes, os ministros. Para pensar quais são os problemas e os fatores que precisamos debater com mais profundidade para um aperfeiçoamento", diz Conrado.
O livro destaca temas como falta de harmonia no STF e ausência de argumentos nas decisões, mas, principalmente, o mundaréu de regalias a que os juízes têm direito.
Daí o neologismo "magistocracia", que mistura "magistrado" e "aristocracia", evocando a ideia de uma casta da toga que, segundo o autor, "erra, protege o erro e resiste à autocorreção", contribuindo para "sérias comorbidades da democracia brasileira".
Conrado deixa claro que não se refere somente a juízes; ele emprega o termo em sentido amplo, incluindo procuradores, promotores e advogados públicos.
Para o autor, que é professor de direito constitucional da USP, o momento é oportuno para a publicação do volume, não só porque ele sentiu maturidade dos argumentos que foram refinados ao longo dos anos mas também porque o país voltou a respirar normalidade política.
"Esse debate não pode sair da pauta", diz.
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