Com espantosa frequência, leilões online oferecem ao mercado preciosos documentos públicos. Ao ocupar funções estatais, personagens como Epitácio Pessoa, José de Alencar, Machado de Assis ou Pedro 2º produziram documentos públicos que, hoje, são disputados como investimento, como raridade colecionável e até como instrumento de crimes financeiros. A depender do conteúdo, do autógrafo, do estado de conservação e da procedência, um documento pode alcançar milhares de reais.
Papéis tramitados entre duas esferas públicas, contudo, estão sujeitos, caso autênticos, ao art. 10 da lei 8.159/1991, que proíbe a comercialização de documentos de valor histórico egressos de arquivos públicos.
A instrução normativa 01/2007 do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) exige que leilões contendo documentos produzidos até o ano de 2000 sejam previamente informados ao órgão para análise de restrições de circulação ou identificação de eventual interesse de alguma instituição de acautelamento de patrimônio cultural.
A partir dessa informação, a autoridade pode exigir a retirada do documento do leilão definitivamente ou, caso necessário, para a realização de perícia, a fim de identificar, por exemplo, numerações, carimbos, vestígios de amarração, marcas de que o papel foi destacado de alguma encadernação, além do próprio conteúdo oficial do documento. Tudo isso para definir autenticidade e procedência do documento, mas nem sempre a comunicação prévia é feita.
Um documento público original assinado por Epitácio Pessoa, por exemplo, antes de chegar a uma grande plataforma de leilão online como eBay, Catawiki, Mercado Livre ou LeilõesBR, ou a grupos de WhatsApp, Facebook e Telegram, provavelmente saiu de modo ilícito de algum arquivo federal ou estadual. O aperfeiçoamento da legislação esparsa e a adoção de medidas interinstitucionais são um caminho urgente e necessário para salvaguardar o patrimônio documental.
Neste momento, a Câmara dos Deputados discute o projeto de lei 2.789/2021, que atualiza a Lei de Arquivos (lei 8.159/1991) e torna improbidade administrativa o ato de "agir ou concorrer para a perda, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens materiais e imateriais do patrimônio histórico, artístico e cultural brasileiro, inclusive mediante desestruturação e corte de verbas para custeio dos órgãos incumbidos de proteger tal acervo".
A proposta é bem-vinda. Não é razoável que a Lei de Improbidade (lei 8.429/1992) ainda não contenha uma única referência a bens culturais. Mas essa medida ainda demoraria algum tempo até produzir efeitos concretos em uma realidade que, neste momento, já exige providências urgentes.
Uma ação complementar, de efeitos mais rápidos, poderia mobilizar os ministérios da Cultura e da Justiça e o Ministério Público para obrigar os marketplaces a se comprometer com "effective moderation policies" e impedir a venda de bens culturais sem prova de origem e comercialização lícitas. Medidas auxiliares incluiriam a adoção de códigos de conduta para essas plataformas digitais e o desenvolvimento de "bots" para detectar automaticamente, a partir da análise de imagens ou palavras-chaves via inteligência artificial, bens procurados.
A Constituição Federal definiu os documentos como parte do patrimônio cultural do Brasil (art. 216, inc. IV) e fixou que é competência comum de todos os entes da Federação protegê-los (art. 23, inc. III). A Unesco, por sua vez, ao aprovar a "Declaração Universal sobre Arquivos", em 2011, destacou o "papel essencial dos arquivos para (...) assegurar a memória individual e coletiva, e para compreender o passado, documentar o presente com vista a orientar o futuro".
Documentos —textuais, cartográficos, iconográficos, fonográficos etc.— são preciosas fontes de informação, e subtraí-los, extraviá-los, danificá-los ou destruí-los é pôr em risco a nossa memória. Sem memória, é impossível haver cultura e, sem cultura, nada resta da sociedade. Descuidar do patrimônio arquivístico, portanto, é o mesmo que abandonar uma parte de nós mesmos, de nossa humanidade.
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