segunda-feira, 20 de novembro de 2023

O passado escravista escondido em um dos pontos turísticos mais famosos de SP, BBC FSP

 Letícia Mori

BBC NEWS BRASIL

Em meio a barracas de sushi e yakissoba, postes de iluminação com lanternas japonesas, jovens vestidos de personagens de anime e lojas de produtos asiáticos, uma única referência marca a importância da praça da Liberdade, em São Paulo, para a história da população negra: uma pequena estátua da sambista Madrinha Eunice.

A estátua homenageia a matriarca que veio do interior para a capital com 12 anos e fundou a Lavapés, uma das mais antigas escolas de samba da cidade.

Nenhuma outra referência à história dos negros e indígenas é visível na praça. Nada indica que o local, antes de ser chamado de praça da Liberdade, era conhecido como Campo da Forca —onde eram enforcados os condenados à pena de morte por mais de um século, entre 1765 e 1874.

Foto colorida mostra mural com Chaguinhas, homem negro com as mãos em movimento de oração, acima dele há uma forca, e dizeres
No terreno onde ossadas foram encontradas, ativistas fizeram um mural - BBC

Muitos dos condenados eram escravizados que ousaram se rebelar e fugir. Em 1821, por exemplo, foram executados ali José Crioulo e João Congo, que depois tiveram suas cabeças decepadas e levadas para exibição em cidades do interior paulista.

Quem não tinha o corpo brutalmente mutilado era enterrado no cemitério da Capela dos Aflitos, a poucos metros da praça. Hoje, a capela está no centro de um movimento que quer destacar a história negra na Liberdade.

Conhecida como "bairro japonês", a Liberdade foi transformada em um dos principais pontos turísticos de São Paulo por meio do reforço desta ideia de centro da cultura japonesa.

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Mas essa ideia foi usada para esconder o histórico escravagista da cidade, explica o historiador Wesley Vieira, pesquisador na Universidade de São Paulo (USP).

"São Paulo teve um processo sistemático de apagamento das camadas da escravidão com narrativa de que foi criada pelos bandeirantes e jesuítas e desenvolvida pelos imigrantes", diz Vieira.

"Foram criados uma série de símbolos para atestar essa narrativa e negar o passado de desumanização das pessoas escravizadas."

Outro exemplo dessa valorização da força dos imigrantes, além da Liberdade, é a identificação da região do Bixiga, no bairro da Bela Vista, com a comunidade italiana, aponta o pesquisador.

"Essa força dos imigrantes é importante, claro, mas essa narrativa foi usada para encobrir esses registros da São Paulo escravagista", afirma Vieira.

Capela com torre do sino e fachada gastos, atrás há prédios
Ativistas lutam pelo restauro da Capela dos Aflitos - BBC

'HISTÓRIA QUE SP QUER ESCONDER'

Esse processo de apagamento deu tão certo, diz Vieira, que é difícil identificar marcos da história dos negros e dos indígenas na cidade que datam dos períodos colonial e escravocrata.

A Capela dos Aflitos —que movimentos sociais lutam para que seja renovada e preservada— é importante por se tratar de um remanescente desses espaços, de acordo com Vieira.

Durante quase 20 anos, a igreja foi o ponto de encontro da Marcha Noturna pela Democracia Racial, iniciada em 1997 pelo movimento negro, que passava por alguns desses marcos.

Na época do Brasil colônia (e depois durante o império), a região onde hoje é a Liberdade era o centro de diversos equipamentos de opressão do Estado.

O pelourinho, onde os negros e indígenas escravizados eram torturados, ficava a poucos metros, onde hoje é a praça do Tribunal de Justiça.

Depois da desativação do cemitério da capela, com o fim da pena de morte, a construção foi ficando cada vez mais espremida por prédios construídos conforme a Cúria católica vendeu os lotes de terra de propriedade da Igreja.

Com alugueis baratos, explica Vieira, a região foi se tornando local de moradia para a população pobre, negra e indígena —e também rota de fuga para os quilombos do Jabaquara e de Saracura, que ficavam onde hoje é o perímetro urbano de São Paulo.

"Então, esse lugar tem uma presença indígena e negra para além dos equipamentos de tortura do Estado", afirma o historiador.

"Ele também é um lugar em que se pode deflagrar a resistência dessas populações com o desenvolvimento da cidade."

A região também se tornou refúgio, mais tarde, para os imigrantes japoneses que chegaram na cidade e buscavam locais onde o preço do aluguel não fosse alto.

A transformação do bairro em ponto turístico aconteceu a partir dos anos 1970, quando ele já recebia na verdade mais imigrantes coreanos e chineses do que japoneses —cuja imigração é mais antiga.

Em 1973, houve um concurso de decoração do bairro, e Liberdade passou a contar com uma iluminação imitando as tradicionais lanternas japonesas, que permanecem lá até hoje, conta Vieira.

Em 1974, aponta o historiador, a secretaria de Turismo de São Paulo teve a ideia de fazer uma chinatown nos moldes de Nova York.

"Mas, aqui seria a Little Tokyo, e esse processo de transformação do bairro em ponto turístico avançou", afirma Vieira.

"Aconteceu nos moldes do turismo mercadológico, não tinha uma base identitária de valorizar a ancestralidade japonesa. Sempre foi uma imagem fictícia com fins econômicos."

Movimentos de descendentes de japoneses têm criticado nos últimos anos não apenas o fato dos chineses e coreanos terem sido ignorados nessa caracterização, mas também a forma como a luta dos imigrantes japoneses foi usada para invisibilizar a história da população negra.

Por sua vez, o movimento negro critica há décadas o fato de a Liberdade ter sido transformada em um bairro turístico sem lembrar dos negros e sem aproveitar o potencial histórico e educativo da Capela dos Aflitos.

Cordas de forca amarradas em viga de madeira
Padre Feijó escreveu que a corda de enforcamento de Chaguinhas estourou três vezes - Getty Images via BBC

PEDIDOS DE CLEMÊNCIA

Apesar de receber pouca manutenção e cada vez mais escondida, a Capela dos Aflitos se mantém há 200 anos como ponto de peregrinação de fieis e o local de um ritual religioso em homenagem a Francisco José das Chagas, o Chaguinhas.

Chagas foi um soldado negro do primeiro Batalhão de Caçadores de Santos na época em que o Brasil era colônia do império português.

Ele liderou, ao lado de seu colega José Joaquim Cotindiba, uma revolta cobrando o pagamento de salários que estavam atrasados há cinco anos.

Um grupo de soldados libertou prisioneiros, saqueou armas e bombardeou um navio.

"Não podemos entender essa revolta como parte da luta pela independência. Mas, com a visão de hoje, podemos talvez inscrever Chaguinha em uma luta por direitos, até em uma luta por direitos trabalhistas", diz Vieira.

Cerca de cem participantes do motim foram condenados a penas variadas, como trabalhados forçados. Dos sete líderes condenados à morte, Chaguinhas e Cotindiba foram trazidos para o enforcamento em São Paulo em 1821.

Um dos poucos registros históricos do acontecimento fala da necessidade compra de cordas para o enforcamento dos soldados, presos na cela da capela.

De acordo com os registros do Padre Feijó feitos dez anos após o caso, Cotindiba foi executado primeiro.

"No momento de Chaguinhas, a corda arrebentou por três vezes, sendo que na terceira foi solicitado uma tira de couro para reforço", conta Vieira.

O acontecimento levou a população a pedir por clemência —que o governo poderia conceder em caso de um acontecimento extraordinário.

Mas a clemência não foi dada e, segundo os registros de padre Feijó, a execução de Chagas foi brutal: o carrasco o derrubou no chão e terminou de assassiná-lo a pauladas.

A população passou a acender velas no local, que depois passaram a ser levadas para a sala onde Chaguinhas ficou preso na capela.

Vieira diz que foi provavelmente daí que surgiu a ideia, divulgada pela oralidade, de que o nome Liberdade teria vindo do fato do povo pedir a liberdade de Chagas.

"Mas não há registro disso. A população pediu clemência", diz o pesquisador.

"Uma das hipóteses do nome é que a praça foi o local de instalação de uma fonte, o Chafariz da Liberdade, patrocinado pelos liberais no início do século 20."

 Toldo em fachada de igreja que diz "Cemitério de 1775 até 1858"
O cemitério da capela foi o primeiro cemitério público da cidade - BBC

PARA NÃO ESQUECER

Em 2018, uma construção em um terreno ao lado da igreja encontrou nove ossadas humanas, que haviam sido enterradas no cemitério da igreja.

O terreno foi desapropriado, e, em 2023, a Prefeitura criou um edital para a construção de um Memorial dos Aflitos no terreno.

Mas o escritório vencedor do edital desistiu do projeto depois que um vídeo de uma reunião entre uma arquiteta e movimentos sociais viralizou na internet.

Nele, a arquiteta dizia à indígena Rafaela Puri, que havia falado uma frase no idioma puri, que ela deveria "falar português".

O escritório chegou a fazer um encontro de retratação com os ativistas, mas acabou se retirando da empreitada após essa conversa e, à época, emitiu uma nota dizendo que reconhecia ser necessário "aprofundar o entendimento das questões envolvidas nesse território".

O projeto do memorial já havia gerado protesto antes disso, conta Eliz Alves, coordenadora da União dos Amigos da Capela dos Aflitos (Unamca).

Isso porque previa a derrubada de dois espaços da capela, incluindo a cela de Chagas, e usar a área do cemitério —considerado terreno santo— para construção de uma parede, entre outros pontos disputados.

"Além disso, não previa acomodações adequadas para as ossadas. A gente quer que haja respeito", diz Alves.

"Sabemos que elas vão ter que ficar acondicionadas de modo a serem visitadas pelos arqueólogos. Mas é importante que isso seja feito com muito respeito pela passagem. Algo que respeite a todas as religiões para nós é fundamental."

O projeto chegou a ir para o segundo colocado no edital, mas o movimento quer que o próprio concurso seja alterado para incluir incentivos a arquitetos negros.

"A gente sabe que os negros vão estar na execução do projeto, os pedreiros, os ajudantes. Mas queremos que estejam também na elaboração", diz Alves.

Enquanto isso, a Unamca arrecada verbas para o restauro da Capela, que não está previsto no edital da Prefeitura nem será patrocinado pela Cúria —que é oficialmente a dona da construção tombada pelo Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da cidade.

"Nós queremos valorizar a cultura popular. Não podemos deixar que haja o encobrimento dessa história", diz Alves.

A BBC News Brasil procurou a Secretaria Municipal de Cultura (SMC), que disse que "os projetos foram escolhidos conforme os critérios estabelecidos no próprio edital" e que "ao longo de todo o processo, a SMC intermediou o diálogo entre os escritórios vencedores e a sociedade civil".

O novo escritório responsável pela obra teve um encontro com movimentos sociais envolvidos na questão.

A secretaria informou que, na ocasião, foi apresentado o projeto conceitual do futuro Memorial e discutidas sugestões e ponderações, que serão analisadas pelo escritório e apresentadas como propostas ao Departamento de Patrimônio Histórico.

A pasta disse também que a Prefeitura abriu uma consulta pública sobre a criação de cinco novas estátuas de figuras históricas negras, como a de Madrinha Eunice.

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