Suspeito que no coração do nosso mundo contemporâneo reina o mais absoluto tédio. Essa suspeita referente ao papel do tédio como motor de muitas das nossas ações tem vasta credencial na filosofia. Mas não irei tão longe. Ficarei no século 20.
Georges Bernanos (1888-1948) participa dessa linhagem filosófica, teológica e literária que teme o tédio como motor do pecado. A herança adâmica seria esse mesmo tédio que nos atravessa, ainda que tenhamos dificuldade de percebê-lo na imensa maioria das vezes. Penso mesmo que seja o tédio que mova essa coisa ridícula e típica dos nossos tempos chamada moda.
Num de seus clássicos, publicado no Brasil pela É Realizações, "Diário de um Pároco de Província", há um padre como protagonista —muito comum na obra de Bernanos, que quase foi padre, mas percebeu, a tempo, que sua vocação era de escritor, para nossa sorte—, que bebe e se afoga junto com seus paroquianos no tédio que cobre a vila como uma manta de pó.
Nosso narrador protagonista descreve esse tédio como uma espécie de poeira que cobre nossos olhos e penetra nossa boca, mas que percebemos apenas quando o pó fica entre nossos dentes. Uma boca cheia de areia, que não se sabe de onde vem e que é invisível.
O tédio reina absoluto entre nós. Essa inquietação tipicamente contemporânea que leva rios de gente para filas infernais nos fins de semana em busca de lazer e relaxamento —isso mesmo, relaxamento!— geme em nosso estomago.
Mas, se temos tantas coisas a fazer, tantas coisas a nossa disposição, sendo que grande parte da humanidade nunca foi tão rica, por que tanto tédio? Por que inventar coisas para não sentir a pura passagem das horas?
Ao mesmo tempo, Bernanos descreve num outro grande livro, também publicado pela É Realizações, que esse mal em nós funciona como uma espécie de calor que nos derrete. Assim, a vida acompanhada pela solidão do mal brilha como fogo ardente no seu "Sob o Sol de Satã".
São infinitos os mecanismos à disposição do tédio. A busca de inovação nos assola, assim como quem sofre de uma sede eterna que tem à sua volta apenas água salgada para beber. Quando pensamos na obsessão pela inovação, percebemos que ultrapassamos a simples escala de uma psicologia subjetiva para adentrarmos numa sociologia objetiva.
A tara pela inovação se inscreve na estrutura material da vida moderna, sem pena e sem solução. Sem remédio. Todos hão de inovar, sob pena de extinção. As famílias, as pessoas, as empresas, os governos, as igrejas, as religiões. A histeria que toma conta das formas inovadas de espiritualidade carrega em si essa face deformada pelo tédio.
Um dos modos mais antigos de enfrentamento infeliz desse tédio que nos consome é sua negação por meio da autoafirmação de nossa autossuficiência. O afeto que habita esse processo é o orgulho, grande causador de tantos pecados na tradição cristã. Assim como uma entidade que passa a noite a gritar dentro da escuridão, o delírio da autossuficiência se dissolve na agonia do seu oposto, a insuficiência.
Como dizia acima, a moda talvez seja uma das formas mais recentes desse tédio ancestral. Muita luz, muito barulho, muitos amores, muitas juras de se reinventar, muitos lugares a ir e a não ver em estando lá, muitas compras, muita diversão alucinada, tudo para que o tempo passe sem que passemos por ele. Como não ver que toda essa fúria de conteúdo produzido em toda parte é o tédio que se esconde sob a face de uma falsa inteligência?
Essa maldição é como uma úlcera que consome o estômago. As modas de comportamento, de alimentação, de emagrecimento, de auto exposição grassa entre nós sem que nenhuma graça seja pressentida a nossa volta. Ano sabático? Uma das últimas modas a jurar que vencerá o tédio. O mundo não está só consumido pelos combustíveis fósseis, mas também pelos nossos desejos. A busca do sucesso talvez seja, entre as modas, a que mais faz vítimas.
Muitos acham que encontrarão a cura vivendo perto da natureza, mas esta, aos olhos dos homens, também é inundada pelo tédio da vida e da morte.
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