domingo, 12 de novembro de 2023

Antonio Prata - Histórias de ninar (adultos) ,FSP

 Houve um tempo —tão perto, e, ó, tão longe— em que a arte era um holofote na unha encravada, não um campeonato de melhores esmaltes.

Raskolnikov matava velhinhas, a família de Gregor Samsa o assassinava a "maçãzadas", "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (Machado de Assis) é o retrato mais perfeito de tudo o que tem de pior na sociedade brasileira, uma sequência tristemente hilária de ações moralmente condenáveis, atitudes pusilânimes, cálculos mesquinhos e maus passos cretinos.

A ilustração de Adams Carvalho, publicada na Folha de São Paulo no dia 12 de Novembro de 2023, mostra o desenho de uma capivara sentada em um berço balanço.
Adams Carvalho

Madame Bovary procura nos amantes algum escape ou sentido para sua vidinha provinciana. Flannery O’Connor termina um de seus contos mais bonitos com um cara roubando a perna mecânica de uma mulher.

"Laranja Mecânica" (Anthony Burgess)? Os atos mais bárbaros de uma gangue de jovens niilistas e drogados são terrivelmente (mal) remendados pelas ações de um estado opressor e autoritário.

Nelson Rodrigues via em obras como essas um remédio. Católico, escreveu uma vez que Madame Bovary traía para que as senhoras na plateia não o fizessem. Há hipóteses menos pedagógicas. Talvez Madame Bovary traia para que a senhora na plateia fique mais tranquila por trair também. Ou para perceber que o marido é um idiota e deveria mais era se separar. Ou para que o marido se sinta melhor por trair. Ou, quem sabe, para que todo mundo se sinta mal por se reconhecer hipócrita ou culpado, preso numa vida muito aquém de seus desejos? Ou, talvez, Madame Bovary traia simplesmente porque os seres humanos traem —sem nenhuma lição ou intuito pedagógico por parte do Flaubert.

Afinal, arte não existe para fazer ninguém se sentir bem. Pra isso existem o Frontal, o Hopi Hari e os discursos motivacionais. Como disse Tchekhov, o papel do artista é fazer perguntas, não encontrar as respostas.

Nosso querido Anton iria ficar de cabelo em pé nesta terceira década do século 21. A literatura, o cinema e o teatro vêm se transformando num exercício de lacração: o mal está sempre no outro, os protagonistas são ironmen /women da virtude.

A pessoa sai da leitura ou da sessão não com a guarda abaixada, as certezas abaladas, mais próxima da verdade (ou, à falta de uma palavra melhor, da sinceridade): sai com suas certezas reforçadas.

Sobre o esmalte, mete-se uma demão de massa corrida. Esse tipo de obra de arte vem quase com uma moral da história. O rico é sempre mau e o pobre é sempre bom. O homem é sempre mau e a mulher é sempre boa. O branco é sempre mau e o negro é sempre bom. O hétero é sempre um idiota careta e opressor e o LGBTQIA+ sempre um (a) progressista libertário (a).

É evidente que o homem-branco-hétero-cis cometeu (e comete) atrocidades mundo afora. É preciso combater essa e outras injustiças. É preciso lutar por um mundo mais justo —e a arte tem um papel nisso, mas não criando contos da carochinha politicamente corretos e sim falando a verdade.

A realidade é confusa. Contraditória. Muitas vezes incompreensível. A arte é onde tentamos (e na maioria das vezes falhamos, mas seguimos tentando) nos mostrar nus, com todos os nossos defeitos. Se não for pra isso, mais vale ficar com Frontal, Hopi Hari ou palestra motivacional. Até porque as obras de lacração acabam por ser, mais do que edificantes, chatas pra caramba.


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