"Todos estão loucos, neste mundo? Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça, para o total. Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais —a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!"
Reflete Riobaldo Tartarana, mistura de jagunço, miliciano, soldado e terrorista, protagonista de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa. Trata-se de um sujeito atormentado com a natureza horrível do ser humano. A obra-prima decolonial do escritor brasileiro é sobre o caráter indomável e não binário do bem e do mal e a surpresa de que a virtude e o indefensável não são atributos do divino. São constituintes e condições da mente humana.
Mais um trecho do livro: "O diabo vige dentro do homem, os crespos do homem —ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum". Há um vício acadêmico em domesticar o próprio texto de Rosa, relacionando o que foi escrito à época ao país, à língua.
Não. Como "Ulysses", do irlandês Joyce, ou "O Bebedor de Vinho de Palma", do nigeriano Amos Tutuola, "Grande Sertão: Veredas" não pertence a um tempo ou espaço. Ou melhor, transforma, como os dois romances citados, tudo no tempo e espaço proposto na obra.
Em Guimarães Rosa, tudo é sertão. Principalmente dentro de nós —a grande contribuição ontológica e terapêutica do livro para quem, como tanta gente em 2023, anda abismado, chocado e confuso com os horrores que somos capazes de cometer. A recém-lançada adaptação de "Grande Sertão: Veredas" para o cinema, dirigida por Bia Lessa, chama-se "O Diabo na Rua, no Meio do Redemunho". É o que nós somos, é onde estamos. Procurando nos posicionar diante fatos e narrativas, como o miliciano diletante Riobaldo.
Segue outro trecho: "Eu, quem é que eu era? De que lado eu era? Zé Bebelo ou Joca Ramiro? Hermógenes ou Reinaldo... De ninguém eu era. Eu era de mim. Eu, Riobaldo. Medo. Medo que maneia". Tentamos nos vitimizar, procurando convencer a nós mesmos que somos consumidos pelo medo. Mas o que acontece é o contrário. Nós consumimos o medo como dependentes químicos que todos somos dele.
O medo é uma commodity que a tudo impulsiona. A mídia, a indústria de remédios, a indústria de armamentos, religiões, ideologias. É com prazer escondido que procuramos "o meio do redemunho". Entender isso é o que Guimarães Rosa quis dizer com "aumentar a cabeça para o total". Nós destruímos, nós apavoramos, nós construímos, nós encantamos. Somos nós. Não há culpa ou responsabilidade externa a nós. Na beleza e na feiura (como se essa visão binária de mundo fosse possível). É a nossa jornada conjunta. Não binária. Decolonial.
Como Guimarães termina seu infinito romance: "Diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia."
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