1.
Sempre penso em inteligência artificial quando levo meu filho à catequese. Estranha associação? Talvez, leitor. Mas eu sou estranho e agora é tarde para mudar.
Não pretendo que ele seja crente. Ele será o que entender: crente, agnóstico, ateu –viver e deixar viver é o lema da casa.
Mas gostaria que, na infância, ele adquirisse algumas noções básicas sobre essa "moralidade de escravos", para citar um célebre filósofo alemão que terminou sua carreira abraçado a uma cabeça de cavalo.
Compaixão pelos mais fracos. Capacidade de perdão. Responsabilidade moral pela sua conduta. Respeito pela essencial dignidade de todos seres humanos.
Nada de especial: esses valores, que começaram no cristianismo, acabaram por definir os códigos legais e éticos da civilização ocidental. Não foram os únicos, certo, mas foram os essenciais.
Verdade, grande verdade: essa civilização nem sempre esteve à altura deles. Sua longa lista de barbáries –a Inquisição, as guerras religiosas, o tráfico de seres humanos etc.— é a prova definitiva de que a prática nem sempre cumpriu a teoria.
Mas, como lembrava o historiador Tom Holland no seu "Domínio", mesmo quando criticamos cada um desses crimes, é a linguagem cristã secularizada que usamos, não a ética do paganismo romano.
Repetindo: é indiferente se somos crentes, agnósticos ou ateus. É indiferente se somos de esquerda, de direita, ou nem uma coisa nem outra. Nossa gramática moral é tributária de Jerusalém, mesmo quando pensamos que não é.
E a inteligência artificial? Que tem a ver com o assunto?
Tem tudo. Sou leigo em tecnologia: como dizia um personagem de Woody Allen, eu nem sei como funciona o abridor de latas.
E, entre "doomers" e "boomers", venha o diabo e escolha. Os primeiros afirmam que a IA vai ser nosso fim. Os segundos acreditam que será a nossa salvação. Não me meto em tais polêmicas.
Mas sorri quando, recentemente, um dos grandes otimistas sobre o assunto, Yann LeCun, declarava ao Financial Times que não existe uma relação necessária entre superior inteligência e desejo de domínio. Os medos da humanidade sobre máquinas hiper-inteligentes não fazem o menor sentido.
Quando li as palavras de LeCun, pensei: "Você tem de contar essa à restante criação animal".
Aliás, não apenas aos bichos; em 2023, creio que já temos alguns argumentos para afirmar que inteligência nem sempre é virtude. Havia nazistas inteligentes, até brilhantes: Heidegger, Hans Freyer, Carl Schmitt. Comunistas, idem: Aragon, Gramsci, Sartre. E daí?
Uma grande inteligência é um grande ponto de interrogação. E os seus excessos mais patológicos só podem ser freados por "sentimentos morais" que brotam de outra fonte. Eles são a derradeira esperança para domar a besta que há em nós.
Nas discussões sobre o futuro da IA, fala-se muito de engenharia, informática ou matemática. Mas eu talvez começasse por levar o algoritmo a sessões de catequese.
2.
Mudando de assunto, "ma non troppo": minha coluna da semana passada rebentou com meu email. Foram centenas de críticas. Tudo porque escrevi que as novas gerações têm aprendido bastante com prof. Osama bin Laden no repúdio ao Ocidente.
Sua "Carta à América" viralizou no TikTok e em outras redes sociais porque os delírios de Osama, evidentes em 2002, deixaram de ser tão evidentes assim em 2023.
Meu único erro, admito, foi não ter acrescentado que todos aprendemos com todos: Osama, hoje, encanta os ocidentais; mas Osama também foi encantado por eles –na sua casa paquistanesa, por exemplo, as tropas encontraram livros de Noam Chomsky, o famoso linguista que atribui todas as misérias mundiais ao poder oculto das grandes corporações americanas.
Como escrevi na época, isso não tem nada de original: a retórica do jihadismo também deve seus "hits" a vários autores ocidentais que, muito antes de Osama, ofereceram aos terroristas a imagem de um Ocidente decadente, espiritualmente vazio, predatório ou simplesmente genocida, sem nada que o salvasse. Autores de extrema esquerda ou de extrema direita, atenção.
Existe até um livro de Ian Buruma e Avishai Margalit que conta essa história com detalhe: "Ocidentalismo".
No fim das contas, razão tinha o filósofo alemão da cabeça de cavalo: tudo é um eterno retorno.
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