José Murilo de Carvalho acreditava que, após 140 anos de existência, havia mais democracia do que República no Brasil. Poucos seriam capazes de associar a segunda à afirmação da igualdade perante a lei e à ausência de privilégios ou ao bom governo e ao cuidado com o bem público.
Tinha razão. E ia mais longe. O historiador da República afirmava que a nossa não tinha salvação, ou tinha, mas só por milagre de frei Vicente, aquele que, em 1627, escreveu que no Brasil nenhum homem “é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. E Murilo concluía: “A República extinguiu o privilégio dos Braganças, mas não conseguiu eliminar os privilégios sociais.”
Eis um – entre outros – campo em que a República falhou miseravelmente: o combate aos privilégios. Se alguém quiser uma lição sobre o que disse o historiador basta ler a reportagem de Pepita Ortega, do Blog do Fausto, sobre a sessão em que o Conselho da Justiça Federal (CJF) começou a julgar se pagará R$ 240 milhões a juízes. Trata-se de velha discussão: a correção monetária pelo IPCA – e não pela Taxa Referencial – das Parcelas Autônomas de Equivalência (PAE) do auxílio moradia, pagas a magistrados entre 1994 e 2002. O pleito é da Associação dos Juízes Federais. O primeiro voto foi desfavorável ao pedido dos togados para espetar a nova conta no bolso do contribuinte.
A ministra Maria Thereza de Assis Moura, do CJF, assim manifestou sua indignação, reproduzindo as palavras do ministro João Otávio de Noronha, em sessão de 2018, quando o mesmo passivo foi pago: “Eu espero que essa grande reprodutora, a Mãe da PAE, sossegue agora, que ela seja esterilizada. Vamos ligar as trompas. Não pode mais gerar recursos de dinheiro, dinheiro, dinheiro. Isso já chegou a um limite. Espero que essa seja a última decisão em matéria de PAE.” Doce ilusão. Cinco anos depois, o CJF vai decidir a mesma matéria. A mãe PAE pode voltar a fornecer mais leite aos filhos. Após o voto contrário de Maria Thereza, o julgamento foi suspenso com pedido de vistas.
Esse não é o único caso de vantagens pretendidas pelos doutores que foi parar nas cortes e conselhos. Em outro julgamento, após 17 anos de análise, o STF concluiu pela derrubada de um penduricalho histórico do Ministério Público – os “quinto”, “décimo” e “opção”, pagos a integrantes do órgão que ocupavam cargos de direção ou assessoria, mesmo após o término do exercício da função. Se o ganho auferido era inconstitucional e, portanto, ilegal, alguém pode perguntar: os procuradores vão devolver o recebido indevidamente? José Murilo diria que não. Ele sabia que é mais fácil a República devolver o poder aos Braganças do que acabar com os privilégios dos doutores.
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