No rol dos efeitos da Covid longa, fala-se pouco de sequelas psicossociais. É que os discursos competentes se centram na biologia, passando ao largo dos componentes sociais e políticos da pandemia, de modo especial no caso brasileiro, em que o vírus foi secundado por outro tipo de morbidade, com sequela: a censura. Síndrome relevante, numa violação flagrante da letra constitucional de 1988, é a sua inoculação em organizações que patrocinam eventos culturais.
Fenômeno da repressão de manifestações, a censura pode ser conjuntural ou estrutural. No primeiro caso, o Estado é sujeito das ações constrangedoras, seja em períodos liberticidas como na ditadura militar, seja em cerceamentos que invocam uma legislação específica. Já a censura estrutural varia dos atos de controle dos discursos sociais até as inibições institucionais da liberdade artística. Está em vigência essa prática socialmente morbosa.
Repercutiu, assim, o cancelamento em Brasília de "O Grito", exposição de Marília Scarabello, que encenou visualmente numa lata de lixo o presidente da Câmara, o ex-ministro da Economia e uma senadora. Idêntica foi a censura em Porto Alegre da exposição "Desmonumentos", de André Parente, que já havia sido apresentada no Brasil e no exterior. O artista cria pluriexpressões (bandeiras, moedas, vídeos) em técnicas múltiplas. Numa das moedas, figuram como cara e coroa os rostos do ex-presidente da República e do seu herói torturador.
Não à toa esse expoente da flagelação provinha da terra gaúcha, assim como a maioria dos generais da ditadura e de outros influentes na hierarquia militar. O Blut und Boden (sangue e terra), que antecede o nazismo e por ele foi apropriado, é familiar ao colonato alemão. É uma fórmula identitária latente de branquitude e radicalismo. Pode ser a componente sulista no imaginário da extrema direita, associada ao tradicionalismo "gaudério", isto é, aos valores ruralistas de serranos catarinenses e gaúchos.
Valores de manada: lance-se ao mar o chefe de um bando de carneiros, e todos o seguirão. Mas não precisa seguir ao pé da letra a sugestão para comprovar a parábola do instinto levado ao cúmulo. Basta ponderar que instintos extremados em enraizamentos tradicionalistas contaminam a esfera pública e alienam a cidadania.
A repressão à ironia criativa de artistas tem gravidade política, porque é censura estrutural, ou seja, produto de um cínico radicalismo oficial que perpassa as organizações e incrementa mentiras. De outro lado, as criações expostas são figuras poéticas de uma verdade. A lata de lixo, as moedas são vibrações irônicas, suscetíveis de fazer reverberar na consciência a esclerose do discurso público que a estrutura doente, sequelada tenta manter.
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