A praça Rotary, no centro de São Paulo, é um respiro e um silêncio no meio da desordem paulistana. O respiro surge já ao passar pelas grades do espaço, quando calçadas mal cuidadas, carros que buzinam e o cinza do asfalto dão lugar a crianças que jogam bola, cachorros que correm sem coleira e um emaranhado de árvores que esverdeiam os bairros de Santa Cecília e Vila Buarque.
Já o silêncio fica guardado passos adiante, num prédio da praça com paredes curvas, 2.334 metros quadrados, janelões que tomam todo o pé-direito e uma marquise. Ali funciona desde 1950 a biblioteca Monteiro Lobato.
Pioneira em disponibilizar livros para crianças no Brasil, a instituição é ainda mais antiga —foi inaugurada em 1936, quando Mario de Andrade era o diretor do Departamento Municipal de Cultura. Primeiro, ela funcionou nas redondezas, na rua Major Sertório. Depois, mudou-se para outro espaço também na praça Rotary, antes de finalmente se estabelecer no atual edifício, projetado pelo arquiteto William Hentz Gorham.
Hoje, ao cruzar a porta que dá acesso ao salão principal da biblioteca, a sensação é a de entrar numa igreja. O silêncio é espesso e passos fazem eco pelos corredores, enquanto pessoas falam baixo, leem e estudam aqui e acolá. Mas é uma percepção que logo desaparece, porque o clima é o oposto das atmosferas dos templos. Ali não há espaço para a rigidez nem para a sobriedade. Quem manda por lá é a infância.
Tanto que já na entrada o visitante é recebido por bonecos gigantes e coloridos de personagens do Sítio do Picapau Amarelo —os mesmos que desfilam no Carnaval paulistano e conduzem o tradicional bloco infantil Emílias e Viscondes. Logo atrás, uma sala imita um livro pop-up gritante, com personagens como Narizinho, Pedrinho, Tia Nastácia e Dona Benta em escala humana.
Mas uma das partes mais interessantes está à direita dessa sala. A poucos passos, chega-se a uma exposição permanente sobre Monteiro Lobato, onde é esmiuçada a vida do fundador da literatura infantojuvenil brasileira de forma cronológica, do seu nascimento, em 1882, passando pela carreira de escritor e chegando à sua morte, em 1948. O autor conheceu a biblioteca e frequentou o espaço, mas naquela época o lugar ainda não trazia o seu nome e era batizado de Biblioteca Infantil Municipal, como foi até 1955.
Nessa exposição, perdido entre chapéus, cadeiras, escrivaninhas, livros, tabuleiros de xadrez e cacarecos de todos os tipos, há um potinho de madeira com tampa de vidro. Aqui voltamos à comparação com as igrejas, porque dentro dele há algo parecido com uma relíquia religiosa, como nos relicários que guardam partes de corpos de santos.
No recipiente, está um fragmento da costela de Monteiro Lobato.
A placa diz que é um "pedaço de costela de Monteiro Lobato extraído durante cirurgia realizada em 1945". Logo ao lado, estão um vidro de remédio homeopático e um eletrocardiograma feito pelo autor.
Após quase 80 anos da retirada, o osso apresenta hoje uma aparência marrom e airosa, mas costuma passar despercebido por visitantes desavisados. Quem quiser achá-lo precisa empreender uma caça ao tesouro entre as vitrines. A biblioteca diz não saber por que a costela foi guardada por Lobato em seu acervo, que foi doado para a instituição depois de sua morte. Mas está lá.
Essa é só a parte mais curiosa —e funesta— dos itens do autor, que somam cerca de 10 mil objetos. O que não está à vista fica acondicionado em quatro estantes inacessíveis ao público, onde há roupas, sua biblioteca pessoal, títulos que editou ou traduziu, livros raros com anotações, recortes de jornais, cartas, objetos pessoais e, é claro, os livros que escreveu —das primeiras edições às mais atuais.
Mas não é preciso acessar o acervo para ler as histórias do Sítio. Exemplares dessas diferentes edições também fazem parte da biblioteca circulante, que disponibiliza ao público cerca de 40 mil exemplares de literatura infantojuvenil —de Lobato, de outros autores nacionais e também de escritores e ilustradores estrangeiros. As obras podem ser lidas nas salas de leitura ou levadas para casa.
Já as mais raras e delicadas ficam no acervo fechado, acessível apenas para pesquisadores.
A entrada na biblioteca, a visita à exposição onde está a costela, a leitura dos livros de Monteiro Lobato e de outros nomes, a retirada dos títulos, os silêncios e os respiros são todos gratuitos.
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