quinta-feira, 24 de novembro de 2022

RENATO SÉRGIO DE LIMA, SAMIRA BUENO E ALBERTO KOPITTKE - Por um Ministério da Segurança Pública, FSP

 Passada a dura, desgastante e quase campal batalha das eleições, o país acompanha de perto o período de transição de governo, com formação de equipes temáticas que terão a responsabilidade de lançar as bases para a reconstrução do Brasil. Cada componente dessa transição carregará em si as sementes de como o novo governo, que assume em 1º de janeiro de 2023, irá estruturar políticas públicas à altura das necessidades da sociedade.

Até por isso, é com preocupação que vemos a decisão da equipe de transição indicada pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de constituir um único grupo técnico de Justiça e segurança pública.

Afinal, segurança pública, da forma como será discutida, é o único direito social que não tem espaço nem para uma discussão técnica exclusiva, contrariando inclusive o discurso da campanha de que ela seria priorizada.

Prédios na Esplanada dos Ministérios: Justiça e Segurança Pública podem seguir juntas no futuro governo Lula - Pedro Ladeira - 3.out.19/Folhapress

Segurança e Justiça não formam um único sistema de políticas públicas. Cada uma tem um conjunto distinto, mesmo que complementar e, em alguns casos, coincidente de atores e instituições.

A despeito das mudanças incrementais verificadas nas últimas décadas, ainda persiste na área da segurança no Brasil um modelo reativo e reprodutor de violências, impedindo que o tema seja tratado como uma política social universal e, acima de tudo, um direito e condição essencial para o exercício pleno da cidadania, com liberdade, equidade racial e de gênero, paz e valorização da vida e do meio ambiente.

Temos agora, na transição, a oportunidade de colocarmos a segurança brasileira numa rota contemporânea. E isso passa por um olhar dedicado sobre a área. Não existe nenhum decreto que diga que esse olhar não seja possível de ser feito por dentro do Ministério da Justiça. No entanto, constituir novas capacidades institucionais para um tema específico dentro de uma pasta que trata de mais de uma dezena de temas da mais alta relevância e complexidade será quase impossível.

Apenas para exemplificar: enquanto nada menos do que cinco ministérios são dirigidos e voltados aos temas militares (as três Forças, o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional), a segurança, com seus temas de carreiras policiais, controle da violência e criminalidade, precisa disputar (literalmente) cadeiras dentro do Ministério da Justiça para trabalhar ou planejar ações integradas. Imaginem, então, disputar ideias, em especial as inovadoras e conceituais.

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A ideia de superministério, como a vendida pela gestão Jair Bolsonaro (PL) para contemplar Sergio Moro e Paulo Guedes, não é, nem de longe, uma boa prática de gestão. Na disputa da atenção do titular da pasta, elas se diluem ou são confundidas com interesses corporativistas. Falar de carreiras, novas regras de governança e modernização normativa e tecnológica, porém, não deveria ser visto como algo menor na política.

Estamos desde 1988 na fila por prioridade capaz de substituir o entulho autoritário que até hoje rege as instituições de segurança pública e que permitiu que Bolsonaro explorasse fissuras do ordenamento democrático do país. E, pragmaticamente, por mais respeitada que seja a liderança que venha a assumir uma pasta hipertrofiada, será impossível evitar a frustração e, mais uma vez, a sensação de tempo perdido.

A União pode fazer muito mais do que financiar ou substituir o protagonismo dos governadores. Pode e deve ser indutora de mudanças e repactuações federativas. Para isso, precisará ter uma área de primeiro escalão dedicada a essa enorme tarefa e à revalorização da segurança pública como direito fundamental, não como reduto de radicalização bolsonarista. Mas é preciso ter pessoas olhando para isso, que tragam suas experiências práticas e seus aprendizados acadêmico-científicos.

Bolsonaro reforçou a violência como linguagem da política. Para superá-la, Lula tem a chance de desmontar as armadilhas montadas ao longo de décadas e que retroalimentam o medo, a insegurança e a radicalização política que marcam nossa história. Dentro de tantos inegáveis desafios que têm o novo governo, é preciso lembrar que segurança pública é o único dos direitos fundamentais previstos no artigo 6° da Constituição a não ter até hoje um ministério para chamar de seu.

Os Onodas nacionais - Maria Hermínia Tavares, FSP

 

É como se fossem dois países. Em um, a vida parece seguir normalmente. O presidente eleito viaja pelo mundo e, por onde passa, é recebido com simpatia, enquanto aqui se prepara a transição de governo. No outro país, há crispação e raiva — muita raiva.

Partidários do perdedor fecham estradas, promovem motociatas, atacam pessoas, divulgam desatinos nas redes e se aglomeram diante dos quartéis clamando por intervenção militar. Fazem lembrar Hiroo Onoda, o patético tenente japonês que durante 30 anos ficou escondido na selva das Filipinas, sem saber que a Segunda Guerra Mundial já era história. O comportamento dos nossos Onodas decorre de dois fenômenos casados. O primeiro tem a ver com o modo como se informam; o segundo, com os laços que os unem a seu líder.

Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro participam de manifestação pedindo intervenção federal, no quartel-general do Exército, em Brasília - Sergio Lima - 1.nov.22/AFP

Em recente seminário, o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, argumentou, arrimado em dados de pesquisa, que os brasileiros vivem em ambientes estanques de informação: ecossistemas constituídos por diferentes órgãos da imprensa escrita, emissoras de rádio e TV e redes sociais que veiculam valores e imagens antagônicas dos problemas brasileiros.

Com os também cientistas políticos Frederico Batista Pereira e Nara Pavão, Nunes observou em artigo publicado há pouco que a capacidade de identificar notícias falsas variava dramaticamente conforme os meios de comunicação que as pessoas por eles entrevistadas seguiam. Telespectadores da TV Record, assinantes do Terça Livre — o blog do notório bolsonarista Allan dos Santos — e do site Brasil Paralelo penavam muito mais do que a média do público para distinguir verdade e mentira, quando expostos a uma e a outra.

Desde sempre, como até as vidraças dos palácios federais estão fartas de saber, Bolsonaro apostou na polarização política assentada em temas propícios à mobilização das emoções. De forma inédita na vida nacional, alojou no centro da disputa política valores familiares, educação dos filhos, liberdade para assumir riscos letais — como na recusa à vacinação — e, muito especialmente, a fé.

A adesão política nunca resulta de frio cálculo: envolve paixões às pencas. Mas o apelo direto e sistemático a sentimentos e valores que infundem sentido à vida privada de cada qual — e supostamente estão ameaçados por inimigos reais ou imaginários —, reforça a tendência humana a rejeitar informações que contrariam crenças arraigadas: eis o ingrediente primeiro da polarização afetiva. Por hostil ao convívio democrático, neutralizá-la é o desafio dos vitoriosos. Talvez mais difícil do que convencer Onoda de que a sua guerra acabara.

Os infiéis, por Bruno Carmelo - Papo de Cinema

 “Por que você não pode ser fiel como todo mundo?”, pergunta uma mulher ao marido e ao amigo dele durante o jantar. Ambos riem alto, como se tivessem ouvido a piada mais engraçada do mundo. Ao longo de uma série de esquetes, a comédia italiana baseada na premissa francesa demonstra uma compreensão muito particular da infidelidade: primeiro, ela ocorre apenas entre duplas casadas há anos, procurando uma escapatória à rotina entediante. Segundo, ela constitui uma iniciativa masculina. Mulheres também traem, porém com menor frequência, apenas em represália à traição masculina. No caso delas, a traição seria um ato de vingança, enquanto no deles, se trataria da manifestação de um desejo incontrolável. “Sou um homem, é uma coisa ancestral. Homens são caçadores, e mulheres, coletoras”, justifica um dos maridos traidores. A esposa contesta, ainda que este ponto de vista jamais seja abandonado por completo. O projeto demonstra ciência de sua visão arcaica, mas não faz questão de se afastar dela. O diretor Stefano Mordini oferece ao machismo um tratamento tão leve quanto conformista: aparentemente, homens são assim mesmo.

Por mais que as cenas sejam ocupadas por homens e mulheres (mais especificamente, por maridos e esposas), Os Infiéis (2020) não esconde o ponto de vista masculino. Todas as traições partem deles, que controlam os rumos narrativos enquanto mulheres se contentam em reagir aos gestos masculinos. Elas podem retaliar, se conformar ou então se tornar mais atraentes para “manterem o marido em casa”. Ainda paira no horizonte a possibilidade que tudo não passe de uma loucura, um exagero de interpretação delas. De qualquer modo, a responsabilidade pela traição masculina repousa sobre o comportamento destas mulheres paranoicas, histéricas, controladoras. Como se o posicionamento não fosse machista o bastante, ele se encaminha a um grotesco episódio de gaslighting, ou seja, o tratamento da mulher como louca através de um conluio entre homens. A noção romantizada de “guerra de sexos” ganha uma tradução literal nesta história: os dois lados não se amam, e sim competem pelo direito de trair sem ser traído, de aproveitar sua sexualidade mais do que o lado oposto. O projeto exemplifica bem a noção segundo a qual a relação entre homens heterossexuais possui natureza homoafetiva: eles veem como modelos os colegas homens, os machos conquistadores, ao invés das mulheres interpretadas como psicologicamente frágeis.

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A compreensão social do filme como um todo se demonstra redutora: há apenas casais de mesma idade, pertencentes à classe média-alta, brancos e heterossexuais. A premissa supõe que existam homens cisgênero e mulheres cisgênero enquanto categorias únicas, opostas e excludentes. Não se explora qualquer possibilidade entre os dois, nem mesmo na chave da curiosidade. A piada transfóbica da conclusão se torna a cereja do bolo em um filme que ainda explora o travestimento para fins de ridicularização. Comédias recentes, bastante simples em suas pretensões sociais, já superaram a homofobia e transfobia em seu sentido mais estrito – vide o beijo gay inconsequente em O Sol de Riccione (2020), a sexualidade feminina livre e descomplexada de O que as Mulheres Querem (2014) e os conflitos geracionais de Tal Mãe, Tal Filha (2019). Por mais problemáticos que sejam estes projetos no que diz respeito à caricatura social, eles ao menos pressupõem uma pluralidade de gênero e sexualidade, algo evitado pela comédia italiana. Diante de uma contemporaneidade plural e conectada, o resultado soa como uma tentativa literalmente reacionária de resgatar a primazia dos machos dominadores, para quem a infidelidade constitui um direito essencial à masculinidade.

Em termos estéticos, o filme se articula pela sucessão de contos discretamente conectados na reta final. A produção traz o mínimo refinamento esperado de uma história sobre pessoas endinheiradas em hotéis chiques e restaurantes de luxo: há luzes convincentes, espaços deslumbrantes, figurinos adequados, ou seja, um “valor de produção” adequado. No entanto, Mordini limita-se à linguagem mais acadêmica possível. Os diálogos ocorrem em planos e contraplanos básicos, sem qualquer exploração criativa da imagem ou dos espaços. Mesmo assim, dentro de locações espaçosas e repetidas, a montagem sofre para criar dinamismo, além de revelar problemas possivelmente condicionados ao material bruto. A estrutura tipicamente teatral deposita o humor inteiramente sobre a troca verbal entre atores. Por mais que os atores se divirtam em suas esquetes, eles se resumem a estereótipos pouco propícios ao desenvolvimento de personalidades. Marina Foïs, uma das melhores atrizes francesas da atualidade, soa deslocada dentro de um projeto italiano tão escrachado. Já Riccardo Scamarcio, roteirista e produtor, oferece a si mesmo dois papéis diferentes, um deles ridicularizando o “loser”, com dentes amarelados postiços e barriga saliente, e o outro no papel do empresário modelo, numa escolha que soa como gesto de vaidade do ator.

Apesar dos risos fáceis, Os Infiéis constitui uma comédia triste. Ela busca desesperadamente agradar ao público não contemplado pelo humor progressista, baseando-se no sentimento de perda de direitos por parte dos homens. Ainda que involuntariamente, o maior interesse da obra se encontra em sua distância do real e sua leitura enquanto sintoma. A trama se baseia na masculinidade frágil que não se percebe como tal, mas precisa ser provada a todo instante (a si mesmo, aos amigos, à sociedade). As mulheres se adequam ao mundo dos homens – triste fim da personagem de Marina Foïs, recompensando as mentiras do marido com maquiagem, lingerie e sexo. Aliás, para um filme obcecado pela pulsão sexual, os personagens não fazem sexo nem têm prazer com seus próprios corpos. Todos os casamentos estão falidos, desgastados. Cada personagem enxerga na aventura extraconjugal uma pequena oportunidade de superar o vazio de suas vidas cotidianas. Não há amor por ninguém: nem pelas esposas, nem pelas amantes. Brinca-se com uma ciranda de figuras carentes. A cena final, eticamente contestável, serve para selar o destino dos machos que jamais serão felizes com nenhuma mulher, embora fossem capazes de “fazer sexo com 90% das mulheres do mundo”, como dizem. O persistente pano de fundo da realidade nos lembra de que estes empresários conquistadores, no fundo, não passam de homens frustrados.

As duas abas seguintes alteram o conteúdo abaixo.
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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.