É como se fossem dois países. Em um, a vida parece seguir normalmente. O presidente eleito viaja pelo mundo e, por onde passa, é recebido com simpatia, enquanto aqui se prepara a transição de governo. No outro país, há crispação e raiva — muita raiva.
Partidários do perdedor fecham estradas, promovem motociatas, atacam pessoas, divulgam desatinos nas redes e se aglomeram diante dos quartéis clamando por intervenção militar. Fazem lembrar Hiroo Onoda, o patético tenente japonês que durante 30 anos ficou escondido na selva das Filipinas, sem saber que a Segunda Guerra Mundial já era história. O comportamento dos nossos Onodas decorre de dois fenômenos casados. O primeiro tem a ver com o modo como se informam; o segundo, com os laços que os unem a seu líder.
Em recente seminário, o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, argumentou, arrimado em dados de pesquisa, que os brasileiros vivem em ambientes estanques de informação: ecossistemas constituídos por diferentes órgãos da imprensa escrita, emissoras de rádio e TV e redes sociais que veiculam valores e imagens antagônicas dos problemas brasileiros.
Com os também cientistas políticos Frederico Batista Pereira e Nara Pavão, Nunes observou em artigo publicado há pouco que a capacidade de identificar notícias falsas variava dramaticamente conforme os meios de comunicação que as pessoas por eles entrevistadas seguiam. Telespectadores da TV Record, assinantes do Terça Livre — o blog do notório bolsonarista Allan dos Santos — e do site Brasil Paralelo penavam muito mais do que a média do público para distinguir verdade e mentira, quando expostos a uma e a outra.
Desde sempre, como até as vidraças dos palácios federais estão fartas de saber, Bolsonaro apostou na polarização política assentada em temas propícios à mobilização das emoções. De forma inédita na vida nacional, alojou no centro da disputa política valores familiares, educação dos filhos, liberdade para assumir riscos letais — como na recusa à vacinação — e, muito especialmente, a fé.
A adesão política nunca resulta de frio cálculo: envolve paixões às pencas. Mas o apelo direto e sistemático a sentimentos e valores que infundem sentido à vida privada de cada qual — e supostamente estão ameaçados por inimigos reais ou imaginários —, reforça a tendência humana a rejeitar informações que contrariam crenças arraigadas: eis o ingrediente primeiro da polarização afetiva. Por hostil ao convívio democrático, neutralizá-la é o desafio dos vitoriosos. Talvez mais difícil do que convencer Onoda de que a sua guerra acabara.
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