quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Os infiéis, por Bruno Carmelo - Papo de Cinema

 “Por que você não pode ser fiel como todo mundo?”, pergunta uma mulher ao marido e ao amigo dele durante o jantar. Ambos riem alto, como se tivessem ouvido a piada mais engraçada do mundo. Ao longo de uma série de esquetes, a comédia italiana baseada na premissa francesa demonstra uma compreensão muito particular da infidelidade: primeiro, ela ocorre apenas entre duplas casadas há anos, procurando uma escapatória à rotina entediante. Segundo, ela constitui uma iniciativa masculina. Mulheres também traem, porém com menor frequência, apenas em represália à traição masculina. No caso delas, a traição seria um ato de vingança, enquanto no deles, se trataria da manifestação de um desejo incontrolável. “Sou um homem, é uma coisa ancestral. Homens são caçadores, e mulheres, coletoras”, justifica um dos maridos traidores. A esposa contesta, ainda que este ponto de vista jamais seja abandonado por completo. O projeto demonstra ciência de sua visão arcaica, mas não faz questão de se afastar dela. O diretor Stefano Mordini oferece ao machismo um tratamento tão leve quanto conformista: aparentemente, homens são assim mesmo.

Por mais que as cenas sejam ocupadas por homens e mulheres (mais especificamente, por maridos e esposas), Os Infiéis (2020) não esconde o ponto de vista masculino. Todas as traições partem deles, que controlam os rumos narrativos enquanto mulheres se contentam em reagir aos gestos masculinos. Elas podem retaliar, se conformar ou então se tornar mais atraentes para “manterem o marido em casa”. Ainda paira no horizonte a possibilidade que tudo não passe de uma loucura, um exagero de interpretação delas. De qualquer modo, a responsabilidade pela traição masculina repousa sobre o comportamento destas mulheres paranoicas, histéricas, controladoras. Como se o posicionamento não fosse machista o bastante, ele se encaminha a um grotesco episódio de gaslighting, ou seja, o tratamento da mulher como louca através de um conluio entre homens. A noção romantizada de “guerra de sexos” ganha uma tradução literal nesta história: os dois lados não se amam, e sim competem pelo direito de trair sem ser traído, de aproveitar sua sexualidade mais do que o lado oposto. O projeto exemplifica bem a noção segundo a qual a relação entre homens heterossexuais possui natureza homoafetiva: eles veem como modelos os colegas homens, os machos conquistadores, ao invés das mulheres interpretadas como psicologicamente frágeis.

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A compreensão social do filme como um todo se demonstra redutora: há apenas casais de mesma idade, pertencentes à classe média-alta, brancos e heterossexuais. A premissa supõe que existam homens cisgênero e mulheres cisgênero enquanto categorias únicas, opostas e excludentes. Não se explora qualquer possibilidade entre os dois, nem mesmo na chave da curiosidade. A piada transfóbica da conclusão se torna a cereja do bolo em um filme que ainda explora o travestimento para fins de ridicularização. Comédias recentes, bastante simples em suas pretensões sociais, já superaram a homofobia e transfobia em seu sentido mais estrito – vide o beijo gay inconsequente em O Sol de Riccione (2020), a sexualidade feminina livre e descomplexada de O que as Mulheres Querem (2014) e os conflitos geracionais de Tal Mãe, Tal Filha (2019). Por mais problemáticos que sejam estes projetos no que diz respeito à caricatura social, eles ao menos pressupõem uma pluralidade de gênero e sexualidade, algo evitado pela comédia italiana. Diante de uma contemporaneidade plural e conectada, o resultado soa como uma tentativa literalmente reacionária de resgatar a primazia dos machos dominadores, para quem a infidelidade constitui um direito essencial à masculinidade.

Em termos estéticos, o filme se articula pela sucessão de contos discretamente conectados na reta final. A produção traz o mínimo refinamento esperado de uma história sobre pessoas endinheiradas em hotéis chiques e restaurantes de luxo: há luzes convincentes, espaços deslumbrantes, figurinos adequados, ou seja, um “valor de produção” adequado. No entanto, Mordini limita-se à linguagem mais acadêmica possível. Os diálogos ocorrem em planos e contraplanos básicos, sem qualquer exploração criativa da imagem ou dos espaços. Mesmo assim, dentro de locações espaçosas e repetidas, a montagem sofre para criar dinamismo, além de revelar problemas possivelmente condicionados ao material bruto. A estrutura tipicamente teatral deposita o humor inteiramente sobre a troca verbal entre atores. Por mais que os atores se divirtam em suas esquetes, eles se resumem a estereótipos pouco propícios ao desenvolvimento de personalidades. Marina Foïs, uma das melhores atrizes francesas da atualidade, soa deslocada dentro de um projeto italiano tão escrachado. Já Riccardo Scamarcio, roteirista e produtor, oferece a si mesmo dois papéis diferentes, um deles ridicularizando o “loser”, com dentes amarelados postiços e barriga saliente, e o outro no papel do empresário modelo, numa escolha que soa como gesto de vaidade do ator.

Apesar dos risos fáceis, Os Infiéis constitui uma comédia triste. Ela busca desesperadamente agradar ao público não contemplado pelo humor progressista, baseando-se no sentimento de perda de direitos por parte dos homens. Ainda que involuntariamente, o maior interesse da obra se encontra em sua distância do real e sua leitura enquanto sintoma. A trama se baseia na masculinidade frágil que não se percebe como tal, mas precisa ser provada a todo instante (a si mesmo, aos amigos, à sociedade). As mulheres se adequam ao mundo dos homens – triste fim da personagem de Marina Foïs, recompensando as mentiras do marido com maquiagem, lingerie e sexo. Aliás, para um filme obcecado pela pulsão sexual, os personagens não fazem sexo nem têm prazer com seus próprios corpos. Todos os casamentos estão falidos, desgastados. Cada personagem enxerga na aventura extraconjugal uma pequena oportunidade de superar o vazio de suas vidas cotidianas. Não há amor por ninguém: nem pelas esposas, nem pelas amantes. Brinca-se com uma ciranda de figuras carentes. A cena final, eticamente contestável, serve para selar o destino dos machos que jamais serão felizes com nenhuma mulher, embora fossem capazes de “fazer sexo com 90% das mulheres do mundo”, como dizem. O persistente pano de fundo da realidade nos lembra de que estes empresários conquistadores, no fundo, não passam de homens frustrados.

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Crítico de cinema desde 2004, membro da ABRACCINE (Associação Brasileira de Críticos de Cinema). Mestre em teoria de cinema pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris III. Passagem por veículos como AdoroCinema, Le Monde Diplomatique Brasil e Rua - Revista Universitária do Audiovisual. Professor de cursos sobre o audiovisual e autor de artigos sobre o cinema. Editor do Papo de Cinema.

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