Passada a dura, desgastante e quase campal batalha das eleições, o país acompanha de perto o período de transição de governo, com formação de equipes temáticas que terão a responsabilidade de lançar as bases para a reconstrução do Brasil. Cada componente dessa transição carregará em si as sementes de como o novo governo, que assume em 1º de janeiro de 2023, irá estruturar políticas públicas à altura das necessidades da sociedade.
Até por isso, é com preocupação que vemos a decisão da equipe de transição indicada pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de constituir um único grupo técnico de Justiça e segurança pública.
Afinal, segurança pública, da forma como será discutida, é o único direito social que não tem espaço nem para uma discussão técnica exclusiva, contrariando inclusive o discurso da campanha de que ela seria priorizada.
Segurança e Justiça não formam um único sistema de políticas públicas. Cada uma tem um conjunto distinto, mesmo que complementar e, em alguns casos, coincidente de atores e instituições.
A despeito das mudanças incrementais verificadas nas últimas décadas, ainda persiste na área da segurança no Brasil um modelo reativo e reprodutor de violências, impedindo que o tema seja tratado como uma política social universal e, acima de tudo, um direito e condição essencial para o exercício pleno da cidadania, com liberdade, equidade racial e de gênero, paz e valorização da vida e do meio ambiente.
Temos agora, na transição, a oportunidade de colocarmos a segurança brasileira numa rota contemporânea. E isso passa por um olhar dedicado sobre a área. Não existe nenhum decreto que diga que esse olhar não seja possível de ser feito por dentro do Ministério da Justiça. No entanto, constituir novas capacidades institucionais para um tema específico dentro de uma pasta que trata de mais de uma dezena de temas da mais alta relevância e complexidade será quase impossível.
Apenas para exemplificar: enquanto nada menos do que cinco ministérios são dirigidos e voltados aos temas militares (as três Forças, o Ministério da Defesa e o Gabinete de Segurança Institucional), a segurança, com seus temas de carreiras policiais, controle da violência e criminalidade, precisa disputar (literalmente) cadeiras dentro do Ministério da Justiça para trabalhar ou planejar ações integradas. Imaginem, então, disputar ideias, em especial as inovadoras e conceituais.
A ideia de superministério, como a vendida pela gestão Jair Bolsonaro (PL) para contemplar Sergio Moro e Paulo Guedes, não é, nem de longe, uma boa prática de gestão. Na disputa da atenção do titular da pasta, elas se diluem ou são confundidas com interesses corporativistas. Falar de carreiras, novas regras de governança e modernização normativa e tecnológica, porém, não deveria ser visto como algo menor na política.
Estamos desde 1988 na fila por prioridade capaz de substituir o entulho autoritário que até hoje rege as instituições de segurança pública e que permitiu que Bolsonaro explorasse fissuras do ordenamento democrático do país. E, pragmaticamente, por mais respeitada que seja a liderança que venha a assumir uma pasta hipertrofiada, será impossível evitar a frustração e, mais uma vez, a sensação de tempo perdido.
A União pode fazer muito mais do que financiar ou substituir o protagonismo dos governadores. Pode e deve ser indutora de mudanças e repactuações federativas. Para isso, precisará ter uma área de primeiro escalão dedicada a essa enorme tarefa e à revalorização da segurança pública como direito fundamental, não como reduto de radicalização bolsonarista. Mas é preciso ter pessoas olhando para isso, que tragam suas experiências práticas e seus aprendizados acadêmico-científicos.
Bolsonaro reforçou a violência como linguagem da política. Para superá-la, Lula tem a chance de desmontar as armadilhas montadas ao longo de décadas e que retroalimentam o medo, a insegurança e a radicalização política que marcam nossa história. Dentro de tantos inegáveis desafios que têm o novo governo, é preciso lembrar que segurança pública é o único dos direitos fundamentais previstos no artigo 6° da Constituição a não ter até hoje um ministério para chamar de seu.
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