E agora —com Bolsonaro fraco, preso e sem um herdeiro ungido—, o que será do bolsonarismo? A identidade política que moldou a direita na última década se dissolve? Fragmenta-se entre os filhos que tentam manter a marca como patrimônio familiar e os políticos que disputam o espólio eleitoral?
A dúvida só faz sentido porque nem todos estão convencidos de que o bolsonarismo exista como fenômeno substantivo ou que resista com o seu líder nessa condição.
Essas leituras minimalistas ignoram o que sabemos sobre identidades políticas. A psicologia social —especialmente a Teoria da Identidade Social— mostra que adesões duráveis não se reduzem ao carisma de um líder nem se desfazem automaticamente quando ele cai ou morre.
Uma identidade pode se organizar de muitas maneiras.
Ela pode ser baseada no líder, quando uma figura singular concentra e encarna o modo ideal de ser do grupo, funcionando como o rosto e a voz por meio dos quais os membros se reconhecem. Pode ser baseada em valores, quando a coesão depende de um código moral compartilhado —ordem, religião, anticorrupção, patriotismo, defesa da família— cuja força simbólica mantém unidos até aqueles que divergem em outros pontos. Pode ser baseada em laços relacionais, quando o pertencimento nasce da convivência cotidiana: redes, grupos de WhatsApp, igrejas, clubes, pequenos coletivos onde se cria um sentimento de comunidade. Pode ser baseada em uma missão comum, quando os membros acreditam ter um dever histórico —salvar o país, derrotar o inimigo interno, restaurar a ordem— que dá sentido e direção à identidade. E pode ser baseada numa narrativa sobre o mundo, quando o grupo interpreta os acontecimentos com o mesmo mapa cognitivo, lendo cada episódio como parte de uma mesma história de decadência, traição ou redenção.
O bolsonarismo combina todas essas bases, e é exatamente essa acumulação que explica sua resistência. É uma identidade baseada no líder, claro, mas não só. Se uma camada falha, outra segura. Se o líder é derrotado, permanecem os valores. Se os valores são contestados, a comunidade sustenta. Se a comunidade vacila, a missão sobrevive. E, quando nada disso parece suficiente, resta a narrativa que organiza a percepção dos fatos. É essa redundância identitária que faz com que o movimento sobreviva a escândalos, fracassos e interdições jurídicas.
No Brasil, isso tem uma genealogia clara. Antes de Bolsonaro, já existia um fundo emocional —antipetismo visceral, indignação moral, rejeição à política, sentimento de corrupção generalizada. Depois veio a camada interpretativa: a leitura homogênea dos eventos da crise, sempre em chave de condenação da esquerda. Em seguida, valores moralizados, vínculos comunitários, a sensação de missão redentora. Bolsonaro chegou por último, mas com a força simbólica de dar rosto, corpo e gesto a tudo isso. O movimento não nasce dele; ele é a forma que o movimento encontrou de existir.
É por isso que, mesmo que o bolsonarismo tenha se organizado em torno de um indivíduo, ele não é apenas um personalismo. As pessoas não atravessam o país, rompem amizades, brigam com a família e arriscam a própria reputação apenas por causa de ideias. Elas projetam em Bolsonaro sentimentos e esperanças acumulados ao longo de anos. Há ali lealdade, submissão, crença, afinidades eletivas profundas —nada disso simplesmente se transfere. Hoje, nenhum nome da direita se aproxima da capacidade de Bolsonaro de concentrar essa constelação de afetos e percepções. É por isso que a disputa entre filhos e pretendentes não será simples.
Voltemos, então, à pergunta inicial. O bolsonarismo se dissolve com o chefe na cadeia e encarnando um coitadismo embaraçante? Não automaticamente. A prisão não apaga a identidade nem transfere eleitores como se fossem coisas. Pode haver fragmentação, disputas fratricidas, períodos de confusão sucessória.
Pode surgir um guardador de lugar, alguém que jure manter quentinho o posto até a volta do patriarca. A comunidade de identificação pode se transformar, pode mudar de intensidade, pode até atravessar fases de desorientação.
Mas dissolver-se? Apenas se as camadas que a sustentam forem corroídas. E isso não acontece por decreto. Nem por ausência física do líder. Nem pela entrada de substitutos improvisados. A identidade leva anos para se formar e pode levar anos para se desfazer.
O futuro do bolsonarismo está em aberto, mas uma coisa não está: ele é mais espesso, mais entranhado e tem mais base social do que muitos gostariam de admitir.

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