segunda-feira, 3 de novembro de 2025

A história da bossa nova (ou por que grandes cidades existem), Caos Planejado , FSP

 

Anthony Ling

Urbanista e editor-chefe do Caos Planejado, plataforma digital sobre cidades

Roberta Inglês

Urbanista, é editora de urbanismo do Caos Planejado, plataforma digital sobre cidades

Até a década de 1940, Copacabana era um conjunto de sobrados da elite carioca com prédios esparsos, sendo um deles o Casino Copacabana (ou Copacabana Palace Hotel). Em 1946, a prefeitura permitiu que o gabarito dos prédios no bairro chegasse a 13 andares, gerando um boom construtivo na região.

Enquanto a cidade crescia, a mistura de pessoas proporcionava encontros, interações e, como consequência, produtividade e novas ideias. O rápido processo de transformação levou Copacabana a se tornar, na década de 1950, o principal cenário da bossa nova, que nasceu como fruto da urbanidade que se encontrava nas ruas, nas esquinas e nos botecos.

Ruy Castro, no livro "Chega de Saudade", relata que o símbolo dessa aglomeração criativa, que atraía artistas de outros estados, era o Beco das Garrafas.

O local reunia quatro boates vizinhas e ficava próximo do Copacabana Palace, de onde os artistas internacionais muitas vezes saíam, após seus shows, para se divertir e interagir com os músicos brasileiros na viela.

Era, talvez, o epicentro dos 43 bares mapeados pelo autor que foram palco da história da música no Rio de Janeiro. Foi a partir da mistura de influências do jazz e do samba, da construção coletiva e da improvisação, que o novo movimento musical da bossa nova surgiu.

Calçadão com padrão ondulado preto e branco na orla, com ciclistas e pedestres. Avenida com carros e táxi amarelo. Ao fundo, prédios residenciais e montanha sob céu azul.
O Copacabana Palace Hotel (ao centro) já existia em 1946, quando a Prefeitura do Rio permitiu que o gabarito dos prédios no bairro chegasse a 13 andares, gerando um boom construtivo na região - Carlos Fabal - 14.mar.24/AFP

Talvez a história da bossa nova tivesse sido diferente se João Gilberto não houvesse saído de Juazeiro, na Bahia. Mas, em respeito a Juazeiro, em qual cidade do interior seria possível ver essa confluência de músicos, boates, hotéis e moradores de diversas especialidades? A história da bossa nova é, em essência, uma história sobre por que grandes cidades existem.

O surgimento das cidades, esse aglomerado de pessoas morando, trabalhando e interagindo no mesmo local, não ocorreu ao acaso. Ele se deu, fundamentalmente, por motivos econômicos. Cidades possibilitam ganhos de escala e de aglomeração. Se há muitas pessoas vivendo no mesmo local, há escala suficiente para equipamentos e especialidades profissionais que não seriam factíveis em comunidades menores.

Não é por acaso que algumas profissões altamente especializadas só existem no Brasil em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, ou que essas duas cidades, combinadas, tenham um terço dos times da Série A do Brasileirão.

Ao mesmo tempo, através dos efeitos de rede, grandes cidades tornam seus moradores mais produtivos: pesquisadores do Santa Fe Institute (EUA) verificaram que, à medida que cidades crescem, indicadores como PIB per capita e patentes per capita aumentam proporcionalmente mais do que o aumento populacional.

Com tanta área disponível no Brasil, alguns se espantam ao ver nossa aglomeração em pequenos apartamentos em cidades ou ao ver grandes cidades que continuam crescendo.

Ainda, algumas reportagens noticiam a estagnação populacional das capitais, sugerindo a saturação do modelo urbano. No entanto, as cidades das regiões metropolitanas, que circundam os polos e formam o mesmo mercado de trabalho, têm apresentado um crescimento populacional em taxas acima da média do país. Entre migrantes de todas localidades e rendas, a motivação é simples: a busca por oportunidades.

No Brasil, passamos um século demonizando esse movimento espontâneo para as cidades, classificando o fenômeno da urbanização como inerentemente negativo. Depois de anos de fracasso, é preciso reconhecer que esse fenômeno está aquém do nosso controle.

Edward Glaeser, economista de Harvard, descreve cidades como a "maior invenção da humanidade", um motor para o progresso que nos torna mais ricos, inteligentes, verdes e saudáveis.

É sobre esse paradigma que precisamos nos debruçar para enfrentar os desafios da urbanização brasileira. Ao invés de continuar concentrando esforços pensando em como fazer cidades pararem de crescer —apenas para vê-las crescerem nas bordas, sem infraestrutura ou planejamento—, devemos entender os motivos pelos quais elas crescem e, considerando essa realidade, como torná-las mais humanas, acessíveis, diversas e dinâmicas.


Morre aos 100 anos Clara Charf, viúva de Marighella e militante de esquerda, FSP

 

São Paulo

Morreu na madrugada desta segunda-feira (3), aos 100 anos, a ativista Clara Charf, viúva do guerrilheiro Carlos Marighella.

A morte ocorreu por causas naturais, segundo Vera Vieira, diretora-executiva da Associação Mulheres pela Paz, organização idealizada e fundada por Charf.

A militante estava hospitalizada em um hospital em São Paulo e havia sido intubada.

O velório está marcado para esta segunda-feira, das 18h às 21h, no Cemitério São Paulo, em Pinheiros. Depois, o corpo será levado ao Crematório da Vila Alpina.

Mulher idosa com cabelo branco e roupa vermelha sentada em cadeira de rodas próxima a janela com vista urbana. À frente, bolo branco com vela dourada formando o número 100 sobre mesa com toalha branca e talheres.
Ativista Clara Charf comemora os 100 anos de idade em celebração em São Paulo - Vera Vieira/Arquivo Pessoal

"Ela teve uma trajetória de um centenário de luta", afirma Vera. "Foi uma incessante lutadora pela paz, pelos direitos das mulheres, pelos direitos humanos. É uma perda irreparável."

Nascida em Maceió em 1925, Clara foi filiada ao PCB (Partido Comunista Brasileiro). Lá, conheceu Marighella, que seria depois considerado o inimigo número um da ditadura militar.

Com o golpe de 1964, viveu na clandestinidade e integrou a ALN (Ação Libertadora Nacional), organização de luta armada fundada por Marighella.

Após o assassinato do companheiro pela ditadura, em 1969, Clara se exilou em Cuba, onde viveu por dez anos. Voltou ao Brasil em 1979 com a Lei de Anistia e se filiou ao PT.

Mais tarde, ajudou na fundação da Associação Mulheres pela Paz, cuja atuação começou com a seleção de 52 brasileiras para compor uma indicação coletiva de mil mulheres para o prêmio Nobel da Paz de 2005.

Paulo Teixeira, ministro do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, afirmou que Clara Charf foi uma das "maiores militantes de esquerda do Brasil" e "referência política", com "legado imenso".

O deputado Ivan Valente (PSOL-SP) a classificou como "gentil e corajosa" e ressaltou os "100 anos de luta por socialismo e justiça social".

Autor da biografia de Marighella, o jornalista Mário Magalhães disse que Clara Charf foi "uma das mulheres mais fascinantes, generosas e destemidas que o Brasil conheceu".

Integrante da Associação Mulheres pela Paz, Fernanda Pompeu disse que a ativista "foi do tamanho dos seus 100 anos".

"Difícil dizer que ela se apagou. Porque uma vida com tamanha luminosidade fica gravada em todas e todos que tiveram o enorme privilégio de aprender com ela."

Edição de Sábado: Dois pra lá, dois pra cá, MEIO

 No Nordeste, 91,4% das pessoas ganham até R$ 5 mil. No Norte, o percentual é de 85,1%. No Sudeste, que “parece rico”, são 72,3%. No Sul, “que também parece rico”, 70,8%. E, no Centro-Oeste, 68,6%. Os dados são do levantamento Brasil em Mapas, baseado na PNAD Contínua do IBGE. O presidente Lula (PT) recorreu a esses números ontem, em São Paulo. No palco montado no Centro de Convenções Rebouças, durante a cerimônia de lançamento de um novo modelo de crédito imobiliário, voltado a ampliar o acesso da classe média à casa própria, o petista discursava ligeiramente mais enfurecido do que o habitual. Tentava desenhar o Brasil e a camada para a qual direciona a maioria de suas políticas. E preparava o terreno para avançar contra o Legislativo.

Ao lado dele, dois rostos diretamente envolvidos na crise recente entre Planalto e Congresso: o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), relator da Medida Provisória (MP) 1.303, derrotada dois dias antes no Congresso. “Não é possível a gente achar que quem ganha R$ 5 mil é classe média. Não é possível. Se o cara paga aluguel e tem um filho na escola, mal e porcamente sobra pra ele comer. É esse país que nós estamos governando”, disse o presidente. 

O bote veio em seguida. “E é esse mesmo país para o qual a gente envia um projeto de lei, depois de acordado no Congresso Nacional, para que pessoas que ganham acima de R$ 600 mil, acima de R$ 1 milhão, paguem uma merrequinha a mais. Para que fintechs paguem um pouco mais, para que as bets paguem um pouco mais. E sabe o que acontece? Eles votam contra. Esse dinheiro poderia garantir um pouco mais de política de inclusão social”, disparou Lula.

Haddad, que havia protagonizado as negociações da MP nos bastidores, também aproveitou o microfone para desenhar — desta vez, o que o Planalto entende estar verdadeiramente por trás da derrota: “Não se ganha eleição sabotando o país, não se ganha eleição impedindo o governo de fazer o bem. Nós vamos seguir nossa vida, vamos seguir nosso curso e entregar um Brasil muito melhor”.

O revés para o governo veio na noite de quarta-feira, na Câmara dos Deputados, mesmo “depois de acordado no Congresso Nacional”. Ainda reverberava a ressaca, o ressentimento sobre a queda da medida que tributava aplicações financeiras e ativos virtuais. Apresentada como alternativa ao aumento do IOF (alta derrubada pelo Congresso, mas restabelecida parcialmente no Supremo Tribunal Federal), a MP era tratada como essencial para o equilíbrio das contas do próximo ano. A expectativa de arrecadação era de R$ 10,5 bilhões só em 2025. E o dobro disso em 2026. E aí está a chave de tudo, na leitura do governo. Para além do mérito da MP, bastante criticada por diferentes setores da economia e do mercado, o Planalto credita o insucesso imposto pelo Centrão e a oposição na Câmara ao jogo eleitoral do ano que vem.

Uma valsa de tropeços

Ainda era junho quando o governo, acuado pela reação ao decreto que elevava o IOF, decidiu recalibrar a rota. Na linha de frente, Fernando Haddad começou a costurar uma alternativa. Conversou com líderes partidários, com os presidentes das duas Casas, com ministros. A intenção era aliviar a pressão, conter a sangria política e econômica provocada pelo desgaste. Mas o acordo político nunca criou raiz.

Antes mesmo de a proposta existir formalmente, seus contornos já suscitaram reações. O texto ainda nem tinha sido protocolado — o envio oficial ao Congresso só veio no dia 11 de junho — e as frentes parlamentares do setor produtivo já se contrapunham. O agronegócio subiu o tom contra a ideia de taxar fundos e títulos ligados à atividade. Os setores imobiliário e de infraestrutura engrossaram o coro. O lobby das bets atuou forte. O barulho cresceu. Enquanto as bancadas pressionavam, o texto descansava nas gavetas da Câmara.

Diferente de um projeto de lei, a medida provisória é um instrumento com força de lei mas editado exclusivamente pelo presidente da República e com efeito imediato. Como o nome diz, tem prazo de validade. E, para se tornar lei de forma definitiva, precisa passar pelo crivo do Congresso em um trâmite especial. O prazo inicial para análise é de 60 dias, prorrogáveis por mais 60. O processo começa em uma comissão mista, formada por deputados e senadores. Se aprovada, a MP segue para votação na Câmara e, em seguida, no Senado. Com o aval das duas Casas, é convertida em lei. Se o prazo se esgota, a MP caduca.

Pois foi só na terça-feira agora, dia 7 de outubro, a menos de 24 horas da caducidade da MP, que a tramitação finalmente avançou — o que já diz muito da forma como o Planalto vem conduzindo essa dança descompassada com o Congresso. A MP passou pela comissão mista por um fio: 13 votos a 12, depois de três adiamentos e uma sequência de negociações. O caminho só se abriu após uma força-tarefa com nomes graúdos: além do próprio Haddad, sentaram à mesa o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da comissão, Renan Calheiros (MDB), os líderes governistas Lindbergh Farias (PT) e o senador Randolfe Rodrigues (PT), além do relator da medida, Zarattini. Oficialmente, buscavam “esclarecer os impasses”. Na prática, avaliavam concessões.

E foram muitas. A proposta original começou a encolher tal qual roupa lavada em água quente. Sumiram os fundos do agro, saíram as debêntures incentivadas. As letras de crédito — LCIs, LCAs e LCDs — mantiveram a isenção, como queria o setor produtivo. Até as bets alcançaram o que pediam: a alíquota, que o governo pretendia elevar para 18%, permaneceria em 12%. A estimativa de arrecadação já murchara para R$ 17 bilhões.

Na outra ponta, quem articulava era a Secretaria de Relações Institucionais, de Gleisi Hoffmann. “Por incrível que pareça, pela primeira vez, vi o governo preocupado e articulado para aprovar uma matéria”, relatou o líder do PL na Câmara, deputado Sóstenes Cavalcante — de quem não se costuma ouvir esse tipo de elogio. Sóstenes conta que recebeu ligações diretas do secretário especial de Assuntos Parlamentares, André Ceciliano, braço direito de Hoffmann, tentando reverter indicações do PL na comissão. Já se tratava de uma reação porque a coreografia era disputada. A oposição se movia habilmente. 

Antes da ligação de Ceciliano, segundo Sóstenes, líderes do Centrão o procuraram pedindo que substituísse dois deputados do próprio partido, aqueles mais “suscetíveis” ao Planalto, por nomes que votassem contra a medida. E assim ele fez. “Me autoescalei. Fiz as contas e achei que a gente poderia ganhar por dois. Mas perdemos por um voto. Aí a gente viu a articulação do governo.” Articulação que não se sustentou por muito tempo. Arrastou-se até o plenário da Câmara, onde expirou. 

O tombo

O relógio corria. No dia seguinte à apertada vitória na comissão mista — já na quarta-feira, data marcada para a caducidade da MP — a Câmara virou palco de pressa e tropeço. No Salão Verde, no plenário, nos corredores, parlamentares circulavam numa dança descompassada. Deputados do PT se juntavam em uma “reunião de última hora”. Mas, de acordo com interlocutores, àquela altura, quem tentava mesmo salvar o texto nem eram mais cabeças do governo, mas o líder do MDB na Casa, Isnaldo Bulhões.  

“Estão oferecendo emenda, principalmente para a saúde, mas ninguém acredita mais”, desabafou um emedebista. Outro, do Republicanos, foi mais direto: o que emperrava o processo não era o conteúdo da medida, mas a lentidão. Lentidão para negociar, para fazer a matéria andar, para liberar as emendas prometidas. Corroborando o colega, dizia ser impossível acreditar que o dinheiro sairia antes que o calendário eleitoral apertasse de vez, já que existem pagamentos atrasados desde 2023.

Ah, o ano eleitoral. Parlamentares de diferentes siglas já murmuravam que votariam contra — não por discordarem do mérito da proposta, mas pelo risco político: a MP, com potencial arrecadatório bilionário, era vista como um cheque antecipado nas mãos de um governo que buscará a reeleição em 2026. E ninguém queria ser o fiador.

Ainda assim, no plenário, o relator Carlos Zarattini tentou um último movimento. Reafirmou que a medida havia sido negociada com líderes do Congresso e redesenhada pelo governo. Ressaltou que a arrecadação era necessária para garantir a meta de superávit de 0,25% em 2026 — e que esse equilíbrio fiscal era condição para reduzir os juros, destravar o crédito e impulsionar a economia. Mas já não falava só de técnica. De antemão, lamentou a virada política e apontou o dedo para fora da Câmara.

“Nós fizemos esse trabalho, não foi da minha cabeça. Foi ouvindo todos os setores produtivos e dialogando, nesta Casa, com todos os deputados e deputadas que quiseram dialogar. Buscamos atender a todos e todas. No entanto, senhor presidente, nós sentimos muito a interferência puramente política, com o único objetivo, que é eleitoral, do governador do estado de São Paulo, que se mobilizou, mobilizou presidentes de partido, para que houvesse uma nova visão sobre essa MP”, acusou Zarattini.

A história não era nova. Já circulava a informação de que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) pegara o telefone e ligara para dezenas de deputados, numa tentativa de derrubar a medida. Tarcísio negou veementemente. Mas a MP, de fato, caiu. Por 251 votos a 193, o plenário aprovou a retirada do texto da pauta da Câmara. Como não havia mais tempo, ela caducou. 

Da tribuna, Sóstenes Cavalcante não economizou elogios: “Eu queria agradecer a alguns governadores, que trabalharam muito, nesta noite. Governador Tarcísio, de São Paulo, que inclusive já foi atacado na outra tribuna porque começam a se preocupar com o Tarcísio. (...) Governador Tarcísio, receba, do alto da tribuna da Câmara dos Deputados, o nosso reconhecimento, a nossa gratidão por todo o seu empenho.”

Quando as emoções se acalmaram, Sóstenes voltou atrás. Disse que a mídia e a militância entenderam errado, pegaram apenas um corte de sua fala. Explicou que Tarcísio não ajudou, veja bem, que ele apenas pediu auxilio ao governador para falar com o presidente do Republicanos, Marcos Pereira, já que não estava conseguindo contato. Afirmou, inclusive, que nem sabe se Tarcísio efetivamente ligou para Pereira. E que pretendia, na verdade, agradecer a todos os governadores aliados, mas teve um “lapso de memória”. Se sua memória falha, a do governo custará a esquecer a derrota — ainda mais no momento em que ela veio. O Planalto surfava uma onda positiva depois de meses em queda. A oposição e o Centrão lhe deram um caldo.

A maré boa

Noutra quarta-feira, a mesma ameaça. Outra medida provisória, também cara ao Palácio do Planalto, caminhava para o fim da linha no Congresso. Por um instante, tudo indicava que a história se repetiria — mesmo roteiro, mesmo abismo. Mas, dessa vez, o desfecho foi outro.

O que parecia prestes a caducar ganhou fôlego nas últimas horas. Durante um almoço no Palácio da Alvorada, Lula entrou em cena. Pediu pessoalmente ao presidente da Câmara, Hugo Motta, que pautasse a proposta que ampliava a isenção nas contas de luz. Pedido aceito. O resultado veio rápido — e folgado: 423 votos a favor, 36 contrários. Em poucas horas, o texto chegou ao Senado, onde passou com igual facilidade: 49 votos a 3, com 3 abstenções. Nesta quarta-feira de derrota, o texto daquela vitória foi sancionado.

A votação expressiva só não superou a empolgação provocada por outro tema sensível — e estratégico — para o Planalto: a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil. A proposta, que patinava na Câmara sob a relatoria de Arthur Lira (PP-AL), acabou se tornando palco de um duelo silencioso entre dois caciques alagoanos. Diante da paralisia do deputado, o senador Renan Calheiros (MDB) tomou a dianteira. Aprovou um texto semelhante na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado e, com isso, aumentou a pressão sobre a Casa vizinha.

Funcionou. Para não ficar atrás, a Câmara acelerou. No início do mês, aprovou por unanimidade o projeto de lei que isenta do IR quem recebe até R$ 5 mil e concede descontos a quem ganha até R$ 7.350. A proposta (PL 1.087/25), enviada pelo próprio governo, agora avança para o Senado, onde a tendência é de aprovação tranquila — dado o histórico recente.

Duas pautas de aumento de benefícios para largas parcelas da população, duas pautas em que o Centrão aceita ser sócio para colher alguns louros. “Não foram vitórias do governo. O ano que vem é eleitoral”, reconheceu um deputado. “Nenhum parlamentar quer se queimar com a base votando contra projetos populares, que aliviam o bolso do eleitor.”A pauta em que há aumento de impostos para setores fortes não goza do mesmo prestígio.

As vitórias acumuladas pelo Planalto recentemente não vieram de sua articulação com o Legislativo. O discurso de Lula, aliás, tem sido o de antagonismo com a Câmara desde o ressurgimento do mote de “ricos x pobres” meses atrás, colocando os parlamentares do lado dos ricos. O slogan ganhou força com o comportamento adotado pelos próprios deputados, particularmente na iniciativa grotesca da PEC da Blindagem. Após manifestações populares — encabeçadas pela esquerda, mas que atraíram apoios de diferentes matizes ideológicos — a PEC foi enterrada. O mesmo pode acontecer com a proposta de anistia, em banho-maria e rebatizada de “PL da dosimetria”.

A maré seguiu favorável ao governo depois da conversa de Lula com o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. As pesquisas refletiram o bom momento, oferecendo um leve respiro para uma gestão que vinha acumulando índices desfavoráveis.

Mas, se as boas notícias deram trégua temporária, a maré pode mudar rapidamente — afinal, estamos a um ano da eleição e muito está em jogo. O Planalto busca planos alternativos para preencher o rombo deixado pela derrubada da MP 1.303. Fala-se, sobretudo, em cortar emendas parlamentares. A cada dia rumo a outubro de 2026, a liberação de emendas se torna uma ferramenta menos eficaz, relatam parlamentares. O que importa, daqui pra frente, até mais que o dinheiro, é que os políticos tomem lado. Ainda está cedo para tomá-lo. Mas os cálculos estão sendo feitos.