quinta-feira, 2 de outubro de 2025

O que separa a PEC da Blindagem da PEC das Prerrogativas?, Alexandra Moraes - Ombudsman FSP

 A cobertura quente da PEC da Blindagem e do projeto de "anistia" aos condenados pela trama golpista é um intensivão de Brasil, e levar ao leitor a movimentação política e a implicação prática acaba sendo tarefa hercúlea.

Por isso mesmo é preciso começar elogiando a reportagem-resumo publicada neste sábado: "A aprovação da PEC da Blindagem representa a maior ofensiva da história feita pelo Legislativo contra as chamadas leis dos crimes de colarinho branco, arcabouço erguido a partir dos anos 1980 em uma marcha embalada por impactos de sucessivos escândalos de corrupção".

Entre outros pontos altos, porém, houve deslizes, como o fato de o jornal não ter formulado uma lista de como votou cada deputado, embora tenha feito um quadro por partidos. No lugar de produzir a lista, colocou nos textos da PEC da Blindagem um "Veja aqui como votou cada deputado federal". O "aqui" era um link para o site da Câmara dos Deputados com o resultado da votação.

A princípio, a decisão do jornal em mandar o leitor catar a informação alhures parece estrategicamente equivocada, mas não chega a ser grave. O fato de enviar o assinante para o resultado bruto da Câmara, sem edição, já é mais preocupante.

Tal como a Alice de Lewis Carroll, o leitor vai se descobrir numa terra diferente e nonsense, onde aquilo que a Folha chama de PEC da Blindagem vira PEC das Prerrogativas —lá, não há "blindagem".

Por outro lado, o texto da Câmara é ágil em informar que a proposta é "de autoria do deputado licenciado e atual ministro do Turismo, Celso Sabino (União-PA)," e dá sua versão sobre como ela apenas "retoma a necessidade de autorização da Câmara e do Senado para o STF processar criminalmente deputados e senadores".

No jornal, o nome de Sabino orbita outra parte do noticiário, o desembarque de seu partido, União Brasil, da base do governo Lula, sem tanto destaque para a autoria da PEC.

Uma bandeira do Brasil com cara de palhaço.
Ilustração de Carvall para coluna da Ombudsman de 21 de setembro de 2025 - Carvall /Folhapress

Folha informa que "a orientação do União foi dada após reportagem publicada pelo ICL (Instituto Conhecimento Liberta) e pelo UOL revelar acusações feitas por um piloto de que o presidente do partido, Antonio Rueda, é dono de aviões operados pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). Rueda nega a acusação". O texto foi um dos mais barulhentos da semana. Ainda segundo a Folha, "nos bastidores, integrantes do partido dizem ver influência do Palácio do Planalto na reportagem, uma vez que um de seus autores tem também um programa na TV Brasil."

A falta de diligência com uma simples lista de votos também contrasta com o interessante diagnóstico feito pela repórter Carolina Linhares no programa Como É que É, da TV Folha.

"Os deputados não ligam muito para a pressão popular porque eles são muitos", afirmou Linhares ao responder pergunta sobre quais seriam, hoje, os efeitos dessa pressão (a Quaest mostrou que 83% das menções à PEC da Blindagem nas redes sociais eram negativas). "Um deputado comentou esses dias: ‘Quando [as pessoas] vão criticar a Câmara, elas criticam a Câmara no todo, mas quando vão votar, elas amam o deputado delas e votam nele independentemente de qualquer coisa’". Linhares ilustrou com um exemplo: "O Datafolha mostrou que a maioria da população é contra a anistia, e eles votaram na quarta-feira o projeto de urgência da anistia."

Se a multiplicidade da Câmara funciona como escudo para o obscurantismo, o jornal deveria buscar meios para jogar luz sobre o que acontece lá. Detalhes como o dos nomes importam, assim como a linguagem usada nos relatos.

Nesse aspecto, o leitor Fernando Alves, 41, viu "uma cobertura celebrando exageradamente qualquer ‘derrota do governo’" e o abuso de expressões como "vitória do centrão" e "traição" da "base do governo", "mesmo que seja uma derrota para todo o país".

Embora os reveses do governo não possam ser desconsiderados, a repetição expõe uma fórmula simplista e já desgastada em coberturas como a da composição da CPI do INSS e da aprovação da lei de redução no controle ambiental ("derrota de Marina Silva"), comentadas por outros missivistas. Não se trata de ignorar as entranhas politiqueiras, mas de saber quando a picuinha começa a ocupar o lugar do interesse público.

Por essas e outras é que o jornal cresce quando abre mão do tom anódino e do relato burocrático. Bom exemplo disso é o vídeo em que a repórter Adriana Fernandes mostrou, em poucos segundos, o custo prático da crise política em Brasília. "Teve o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro, o Congresso agora com PEC da Blindagem, anistia... Essas pautas vão se acumulando e vão tomando conta da pauta econômica. Então a pauta econômica fica em segundo plano, como também fica em segundo plano a discussão fiscal do Brasil."

De pauta em pauta, o leitor vive também seus dias de "Nazaré confusa", já que ficou com a tarefa de calcular como os nomes de Paulinho da Força, Aécio Neves e Michel Temer terminaram a semana no topo da concertação política, a ponto de gerar um "é para não agradar aos extremos mesmo, diz Aécio". Haja intensivão.

Falta crítica à cobertura de operações contra facções criminosas, Alexandra Moraes - Ombudsman

 Na manhã de sexta (26), a Folha publicou e elevou a manchete uma reportagem que deu origem a um Erramos, corretamente destacado. "Polícia Civil faz operação contra o PCC na manhã desta sexta" vinha com um complemento que informava que um dos objetivos era "encontrar suspeitos pelo assassinato do ex-delegado Ruy Ferraz Fontes".

Menos de duas horas depois, apareceu a correção: "A operação (...) tem como alvos pessoas suspeitas de envolvimento com roubo a residência". O erro era atribuído à corporação, que teria "divulgado" o motivo da operação como o caso do ex-delegado assassinado na Praia Grande, Baixada Santista, no dia 15.

Embora indesejáveis, erros acontecem, e o mais importante é que sejam corrigidos com celeridade e transparência. Isso foi feito adequadamente. Mas a questão aqui é mais ampla.

O que leva o jornal (os jornais, na realidade, porque houve erro também na concorrência) a "divulgar" (esse é o verbo usado no texto da Folha) uma operação policial sem nem ao menos ter certeza do que trata ela?

O caso evidencia um excesso de confiança que faz mal ao jornalismo. Como tudo neste mundo, as instituições também têm seus interesses e equívocos. Nesse caso, o erro passou sem grandes consequências. Mas um dos episódios mais traumáticos do jornalismo brasileiro, o da Escola Base, também começou com erros da polícia. Por óbvio não há equivalência entre o erro na finalidade da operação que mira uma facção criminosa e a acusação sem provas que destrói vidas de pessoas comuns. Mas, guardadas as devidas proporções, a semente do equívoco é a mesma —e é resiliente.

No ciclo imediatamente anterior, a versão em papel/Edição Folha foi em direção semelhante. Escolheu colocar na manchete uma operação, dessa vez da Receita Federal, do Ministério Público de SP e da Polícia Militar, feita com espalhafato "contra o PCC", mesmo num dia em que a Folha tinha um furo valioso sobre a intervenção direta de Joesley Batista na negociação com Donald Trump sobre o tarifaço –recuperado e confirmado por toda a concorrência.

Um giroflex feérico ilumina a viatura de polícia à qual pertence.
Ilustração de Carvall para coluna da Ombudsman de 28 de setembro de 2025 - Carvall /Folhapress

A presença da facção criminosa na economia formal já não é novidade, como o próprio jornal mostrou na reportagem de junho sobre o "risco PCC" na Faria Lima e na cobertura das operações subsequentes. A novidade talvez fosse a dimensão da ação das autoridades contra ela, mas isso não é colocado em questão.

Não há questionamento, por exemplo, sobre como o esquema atacado na operação da quinta (25), envolvendo postos de combustíveis, jogos de azar e motéis, pode ter prosperado durante cinco anos.

Há um fator extra de preocupação. O PCC virou também uma espécie de grife para o material policial e as reportagens. Tudo que é "do PCC" parece valer mais no mercado da atenção. Obviamente, o destaque dado à sigla não é despropositado, já que o impacto e o estrago do crime organizado não podem ser subestimados. A questão é pensar se sem a grife o foco seria o mesmo —e quais atores eventualmente poderiam se beneficiar disso.

Também não à toa houve disputa em torno da autoria das operações realizadas no final do mês passado, e não terá sido sem propósito que o governo federal anunciou na TV o que seriam suas realizações contra a facção. Da mesma maneira, o governador de SP, Tarcísio de Freitas, reivindica seus louros. Até aí, é a política sendo a política.

Na Folha, porém, a fala do governador sobre a operação da quinta-feira não apenas era reproduzida de maneira ingênua mas também acabava enunciada como fato ("disse que sua gestão não vai descansar enquanto não puser fim à infiltração do crime organizado").

É essencial oferecer ao leitor uma visão mais crítica e incisiva sobre como o crime organizado tem sido (ou não) combatido no Brasil, para além do PCC. O jornal recentemente promoveu uma boa discussão sobre se o país seria um narcoestado (a resposta predominante foi não), mas as reavaliações não podem ser apenas episódicas. A cobertura da prisão do deputado TH Joias, no início do mês, destacava suposta compra de "armas" para a facção criminosa Comando Vermelho, mas o próprio cargo do parlamentar evidencia um problema que vai bem além dos símbolos mais tradicionais da criminalidade.

Se bandidos dominam áreas cada vez mais amplas da sociedade e da economia, é preciso que o jornalismo ofereça mais do que relatos burocráticos e automáticos de ações oficiais.

Na última quarta, no final do encontro da ombudsman com leitores, um leitor lançou a pergunta: por que as pessoas leem e pagam pelo jornal? Levantei algumas teses, mas achei mais prudente devolver a questão. Alguns participantes me responderam por email (ombudsman@grupofolha.com.br), mas repito-a aqui na expectativa de contemplar mais gente. Agradeço pela colaboração de todos. Lembro, ainda, que a Newsletter da Ombudsman começa a circular nesta segunda. Para recebê-la, basta se inscrever abaixo.

Conrado Hübner Mendes Quem tá ganhando mal?, FSP

 

"Tá tão difícil ser juiz que toda hora tem uma coisa a mais? Parece até ‘gamificação’. Se passar uma fase, ganho uma coisa. Se eu fizer audiência, ganho uma coisa. Se der sentença, uma coisa. Somos servidores. Servimos à sociedade. Parece que o exercício da magistratura hoje é doloroso. Tudo é difícil. Temos que ser bem remunerados, mas quem tá ganhando mal? A pergunta é essa."

Luiz Philippe Vieira de Mello, presidente do TST, desafiou magistrados obsessivos com demandas remuneratórias a explicar se alguém ali ganhava mal. Porque mais desonesto que criar gratificações ilegais é justificar a ilegalidade afirmando que "juiz deve ganhar bem". Como se já não ganhasse.

A magistocracia não se importa em criar adicionais para remunerar tarefas que já estavam incluídas no salário. Como cirurgião pedindo adicional por anestesia e chef de cozinha por temperar o prato. Como se advogado do Estado devesse ganhar adicional para defender o Estado (ops, ele passou a acumular honorários além do salário); ou defensor público para fazer audiência (ops, melhor não contar).

promotor paulista Jairo de Luca, aposentado, chocou o país ao recusar R$ 1,3 milhão de benefício destinado a 1.900 promotores (reportagem de Wesley Galzo, em O Estado de S. Paulo). O depósito foi legalizado magistocraticamente, se você me entende. Correspondia a "compensação por assunção de acervo". A "compensação por assunção" não foi proibida pela língua portuguesa, mas pela lei. Parolagem de Augusto Aras no CNMP a inventou.

A imagem mostra uma placa em uma parede de um edifício, com a inscrição ' MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO'. O fundo é composto por um céu azul com algumas nuvens e a luz do sol refletindo. A arquitetura do edifício é detalhada, com elementos decorativos ao redor da placa.
Sede do Ministério Público de São Paulo, na rua Riachuelo, centro da capital - Rubens Cavallari - 7.dez.23/Folhapress

Jairo talvez tenha praticado o maior gesto individual anti-grilagem magistocrática da história brasileira. Simboliza grito de alguém que conseguiu transformar desconforto de consciência em gesto concreto. Não é para qualquer um.

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Jairo deu exemplo do que a filosofia moral chama de ato super-rogatório, imposto por ninguém exceto a consciência. Virtude praticada sem ser solicitada, sem ser exigível. Vai além da obrigação razoável. Não sabemos quantos cristãos brasileiros fariam o mesmo gesto, quantos levam o bom samaritano a sério.

Houve outros. Anos atrás, o juiz gaúcho Celso Fernando Karsburg abriu mão de mais de R$ 200 mil em auxílio-moradia agraciado por liminar de Luiz Fux ao longo de cinco anos. "Acho que estou mais sintonizado com os novos tempos —eu e mais juízes que renunciaram". Entendeu ser "maneira incorreta de repor perdas salariais". O juiz maranhense Carlos Roberto Oliveira Paula, "incomodado com as justas críticas da população", pediu para interromper o mesmo auxílio.

Há também os orgulhosos da própria malícia. O juiz aposentado Marcelo Bretas, dono de apartamento compartilhado com sua esposa juíza, pediu auxílio em dobro para o casal: "Pois é, tenho esse ‘estranho’ hábito. Sempre que penso ter direito a algo vou à Justiça". Wilson Witzel, juiz antes de virar governador cassado do Rio de Janeiro, ensinava a concurseiros macetes espertos para conquistar benefícios.

O ethos grileiro defende enriquecimento ilícito com recurso público. Tudo legalizado. Magistocraticamente.

Não se constroem instituições esperando de cada membro o grau de coragem e retidão que tiveram Jairo, Celso e Carlos Roberto. Mas não há instituição cuja legitimidade sobreviva ao parasitismo magistocrático.

Por isso vale homenagear a integridade onde ela apareça. E exigir controle da descompostura, do descalabro, da desfaçatez argumentativa e financeira.