segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Fiscal 24h contra ‘freelancers’ do contrabando lota pátio de carros apreendidos na fronteira; veja, OESP

 


Mais de 5 mil veículos apreendidos com mercadorias trazidas ilegalmente do Paraguai e da Argentina superlotam o pátio de 120 mil m² da Receita Federal em Foz do Iguaçu, no Paraná. São carros populares, SUVs, caminhonetes, motos, caminhões e vans usados para transportar cigarros, eletrônicos, celulares, azeites, vinhos e acessórios dos países vizinhos.

Veículos com mercadorias trazidas ilegalmente do Paraguai e da Argentina são apreendidos pela Receita Federal.
Veículos com mercadorias trazidas ilegalmente do Paraguai e da Argentina são apreendidos pela Receita Federal. Foto: Kiko Sierich/Estadão

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A apreensões estão em alta e este ano o número de veículos interceptados é o maior da última década. Só de janeiro a agosto foram retidos 2.071 automóveis. Ao dia, os auditores fiscais retiram das estradas, em média, pouco mais de 5 veículos e, ao mês, cerca de 170.

A escalada das apreensões fez a Receita Federal procurar outro espaço para deixar os carros em Foz do Iguaçu. Aproximadamente 180 automóveis ocupam um campo de futebol, na dependência da delegacia.

Boa parte dos motoristas flagrados, principalmente aqueles que levam cigarros, [e composta pelos chamados “freelancers do contrabando”. Jovens de 16 a 25 anos que fazem várias viagens ao dia e andam em veículos menores na tentativa de despistar fiscais. Para isso, ganham cerca de R$ 1 mil pelo trajeto ida e volta.

O aumento das apreensões é resultado de uma série de medidas, diz o delegado-chefe da Alfândega da Receita Federal em Foz, César Vianna. Uma delas é o reforço na fiscalização. Desde 14 de abril, equipes de auditores fiscais passaram a atuar 24 horas.

Além de carros de passeio, muitas motos têm sido apreendidas, conforme Vianna. Este tipo de veículo, onde são feitos fundos falsos e levados produtos de fácil transporte, é usado principalmente para cruzar a Ponte da Amizade, porque são baratos e tem agilidade. Só até agosto deste ano, 460 motos foram interceptadas.

Logística de transporte

Os carros passaram a ser incorporados na logística do contrabando e descaminho a partir dos anos 2000, quando a Receita começou a desmantelar comboios de ônibus que cruzavam a fronteira levando grupos de muambeiros.

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Para evitar perder grande quantidade de mercadorias de uma só vez, os contrabandistas mudaram o jeito de transportar mercadorias, antes levadas em ônibus lotados. Passaram a dividir os produtos em vários veículos. Os carros fazem viagens curtas até a região de Cascavel, a 140 quilômetros de Foz, e as compras são deixadas em depósitos e até restaurantes.

Mais de 5 mil veículos superlotam o pátio de 120 mil metros quadrados da Receita Federal em Foz do Iguaçu.
Mais de 5 mil veículos superlotam o pátio de 120 mil metros quadrados da Receita Federal em Foz do Iguaçu. Foto: Kiko Sierich/Estadão

Depois, as mercadorias são recolhidas e colocadas novamente nos ônibus para completar a carga. Muitos dos ônibus têm como destino São Paulo.

Vianna diz que a alfândega da cidade fronteiriça tem histórico de repressão na fronteira e, apesar de existir fiscalização em Londrina, Maringá e Ponta Grossa, as equipes são menores nessas cidades. “É uma estratégia para fugir do entorno de Foz do Iguaçu”, diz.

Os ônibus não deixaram de circular por Foz do Iguaçu. Provenientes de várias cidades do Brasil, muitos entram no Paraguai, mas cruzam a fronteira com poucas mercadorias, o suficiente para não estourar a cota permitida de até US$ 500 (o equivalente a aproximadamente R$ 2,6 mil).

Quando passam por Cascavel, recebem o restante da mercadoria que foi levada por veículos menores. As investigações apontam que boa parte dos passageiros são laranjas que emprestam o número do CPF para passar pela aduana levando mercadorias na cota. Alguns recebem R$ 100 pelo serviço.

Vários tipos de carros são apreendidos pela Receita. São SUVs, caminhonetes, carros de luxos, carros populares e aqueles que garantem alta velocidade nas estradas. Além de brasileiros, há automóveis com placas do Paraguai.

Muitos veículos são praticamente depenados para acomodar as mercadorias. Bancos são retirados para colocar pacotes de cigarros. Em alguns carros, são feitos fundos falsos para levar celulares e até mesmo drogas e armas.

De janeiro a agosto deste ano foram retidos 2.071 automóveis pela Receita Federal.
De janeiro a agosto deste ano foram retidos 2.071 automóveis pela Receita Federal. Foto: Kiko Sierich/Estadão

Este ano, durante uma operação, a Receita apreendeu o equivalente a US$ 517.280,63 (R$ 2,7 milhões) em seis veículos. Apenas um deles levava o equivalente a US$ 136 mil (R$ 720 mil). Os produtos mais frequentes são eletrônicos, celulares, azeites, vinho e robôs que fazem limpeza.

Os carros apreendidos são leiloados para pessoa física ou jurídica, incorporados por órgãos públicos, entidades assistenciais ou vendidos para desmanches.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Hélio Schwartsman - Aposta errada, FSP

 Não dá para dizer que os dados sobre impactos negativos da legalização dos jogos no Brasil sejam uma surpresa. O potencial viciante das apostas é conhecido desde a Antiguidade e nossos reguladores, como sói acontecer, fizeram tudo errado.

A falha maior foi ter permitido que os meios de comunicação fossem tomados de assalto por propaganda de jogo —e um tipo particularmente enganoso de publicidade, que insinua que as apostas são rota segura para o enriquecimento.

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Usuário jogando em sites de apostas e bets - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Se milhões de pessoas jogam regularmente, teremos dezenas de milhares de problemas (a prevalência de ludopatas e apostadores compulsivos fica em torno dos 2% e dos 8%, respectivamente).
Daí não se segue a resposta para o dilema seja a reproibição. O fracasso da guerra às drogas e a experiência da Lei Seca nos EUA mostram que esse não é o caminho. Por razões que não cabe aqui discutir, seres humanos gostam de decidir por si mesmos como conduzirão suas vidas.

Ainda que só no reino da ficção, seria possível tornar o mundo mais saudável se os Estados banissem o álcool e o fumo e obrigassem os cidadãos a comer bem e exercitar-se. Mas a maioria de nós descreveria esse cenário como uma distopia, apesar dos resultados positivos.

A melhor abordagem para essas questões, creio, é o paternalismo libertário proposto por Richard Thaler e Cass Sunstein. Você não proíbe as pessoas de adotar comportamentos autodestrutivos, se essa for a sua vontade, mas usa a regulação para estimular escolhas menos insensatas.

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No caso do jogo, a medida óbvia é eliminar a publicidade e disseminar informações corretas sobre as chances de vencer. Limitações a apostas a crédito também fazem sentido. Há que se implementar ainda a possibilidade de jogadores, num momento de lucidez, se autoexcluírem das casas de aposta. Cobrar imposto maior de modalidades de jogo mais viciantes (com resultados instantâneos) é outra providência a considerar.

O cardápio é extenso. Só o que não faz sentido é deixar de regular, já que o próprio "laissez-faire" é uma forma de regulação.

Deus por testemunha, Hélio Schwartsman, FSP

 Para variar, hoje elogiarei autoridades. Pior, vou elogiar o STF. Não vejo, porém, como deixar de aplaudir a decisão unânime da corte que reconheceu a autonomia de testemunhas de Jeová para recusar transfusões de sangue.

Como bom ateu, não vejo o menor sentido em tomar decisões que podem levar à morte com base em interpretações discutíveis de livros religiosos escritos milênios atrás. Mas, como bom liberal, sei que não cabe a mim julgar os valores pelos quais outras pessoas pautam suas vidas.

Sessão plenária do STF, nesta quarta (25), durante a votação do direito de recusar de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová - Gabriela Biló/Folhapress

Se um indivíduo elege como prioridade agir sempre de acordo com um dogma religioso ou qualquer outro princípio filosófico ou mesmo ideia exuberante e as consequências de sua decisão ficam mais ou menos restritas à sua pessoa, não sou eu quem vai discordar. É o famoso "viva e deixe viver", sem o qual é quase impossível manter a paz em sociedades culturalmente diversas.

Nesse contexto, o que o STF decidiu é que pacientes, pelo menos os maiores de idade, no pleno gozo de suas faculdades mentais e devidamente informados sobre os riscos em que incorrem, têm o direito de recusar tratamento médico. Esse pode ser um primeiro passo para tirar o Brasil da pré-história bioética em que o país se encontra.

Com efeito, o direito à recusa de tratamento já está há tempos consolidado nas nações civilizadas e mesmo nos EUA. Por aqui, porém, o Código de Ética Médica ainda pretende que médicos podem passar por cima das decisões do paciente se julgarem que há risco de vida (art. 31).

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É claro que é mais fácil enunciar teses abstratas, como fez o STF, do que disciplinar situações reais. No caso de um testemunha de Jeová que chega desacordado ao hospital e não deixou testamento vital, quem fala por ele? O ministro religioso? Um cônjuge? Outros parentes? Ou é indispensável que o próprio paciente se manifeste para dar eficácia jurídica à recusa?

A tragédia das questões bioéticas é que os casos concretos raramente vêm na forma paradigmática com as quais discutimos princípios. Numa imagem pouco kosher, é aí que a porca torce o rabo.