Para variar, hoje elogiarei autoridades. Pior, vou elogiar o STF. Não vejo, porém, como deixar de aplaudir a decisão unânime da corte que reconheceu a autonomia de testemunhas de Jeová para recusar transfusões de sangue.
Como bom ateu, não vejo o menor sentido em tomar decisões que podem levar à morte com base em interpretações discutíveis de livros religiosos escritos milênios atrás. Mas, como bom liberal, sei que não cabe a mim julgar os valores pelos quais outras pessoas pautam suas vidas.
Se um indivíduo elege como prioridade agir sempre de acordo com um dogma religioso ou qualquer outro princípio filosófico ou mesmo ideia exuberante e as consequências de sua decisão ficam mais ou menos restritas à sua pessoa, não sou eu quem vai discordar. É o famoso "viva e deixe viver", sem o qual é quase impossível manter a paz em sociedades culturalmente diversas.
Nesse contexto, o que o STF decidiu é que pacientes, pelo menos os maiores de idade, no pleno gozo de suas faculdades mentais e devidamente informados sobre os riscos em que incorrem, têm o direito de recusar tratamento médico. Esse pode ser um primeiro passo para tirar o Brasil da pré-história bioética em que o país se encontra.
Com efeito, o direito à recusa de tratamento já está há tempos consolidado nas nações civilizadas e mesmo nos EUA. Por aqui, porém, o Código de Ética Médica ainda pretende que médicos podem passar por cima das decisões do paciente se julgarem que há risco de vida (art. 31).
É claro que é mais fácil enunciar teses abstratas, como fez o STF, do que disciplinar situações reais. No caso de um testemunha de Jeová que chega desacordado ao hospital e não deixou testamento vital, quem fala por ele? O ministro religioso? Um cônjuge? Outros parentes? Ou é indispensável que o próprio paciente se manifeste para dar eficácia jurídica à recusa?
A tragédia das questões bioéticas é que os casos concretos raramente vêm na forma paradigmática com as quais discutimos princípios. Numa imagem pouco kosher, é aí que a porca torce o rabo.
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