sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Deus por testemunha, Hélio Schwartsman, FSP

 Para variar, hoje elogiarei autoridades. Pior, vou elogiar o STF. Não vejo, porém, como deixar de aplaudir a decisão unânime da corte que reconheceu a autonomia de testemunhas de Jeová para recusar transfusões de sangue.

Como bom ateu, não vejo o menor sentido em tomar decisões que podem levar à morte com base em interpretações discutíveis de livros religiosos escritos milênios atrás. Mas, como bom liberal, sei que não cabe a mim julgar os valores pelos quais outras pessoas pautam suas vidas.

Sessão plenária do STF, nesta quarta (25), durante a votação do direito de recusar de transfusão de sangue por testemunhas de Jeová - Gabriela Biló/Folhapress

Se um indivíduo elege como prioridade agir sempre de acordo com um dogma religioso ou qualquer outro princípio filosófico ou mesmo ideia exuberante e as consequências de sua decisão ficam mais ou menos restritas à sua pessoa, não sou eu quem vai discordar. É o famoso "viva e deixe viver", sem o qual é quase impossível manter a paz em sociedades culturalmente diversas.

Nesse contexto, o que o STF decidiu é que pacientes, pelo menos os maiores de idade, no pleno gozo de suas faculdades mentais e devidamente informados sobre os riscos em que incorrem, têm o direito de recusar tratamento médico. Esse pode ser um primeiro passo para tirar o Brasil da pré-história bioética em que o país se encontra.

Com efeito, o direito à recusa de tratamento já está há tempos consolidado nas nações civilizadas e mesmo nos EUA. Por aqui, porém, o Código de Ética Médica ainda pretende que médicos podem passar por cima das decisões do paciente se julgarem que há risco de vida (art. 31).

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É claro que é mais fácil enunciar teses abstratas, como fez o STF, do que disciplinar situações reais. No caso de um testemunha de Jeová que chega desacordado ao hospital e não deixou testamento vital, quem fala por ele? O ministro religioso? Um cônjuge? Outros parentes? Ou é indispensável que o próprio paciente se manifeste para dar eficácia jurídica à recusa?

A tragédia das questões bioéticas é que os casos concretos raramente vêm na forma paradigmática com as quais discutimos princípios. Numa imagem pouco kosher, é aí que a porca torce o rabo.


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