domingo, 26 de novembro de 2023

Inteligência limitada dos títulos, José Henrique MAriante, FSP

 O Estado de S.Paulo anunciou na última semana uma política interna para uso de inteligência artificial em sua produção jornalística. Parte considerável da imprensa já apela à tecnologia, mas nem todo mundo tem o cuidado de tornar isso público. Pode soar como marketing, mas é medida importante de transparência. O Globo, por sua vez, foi ao outro lado da questão e passou a impedir expressamente o acesso de IA generativa a seu site.

Folha, até aqui, ainda não se permitiu esses passos.

Há pontos em comum nas regras publicadas. A maioria dos veículos veda a produção não humana, deixando para as máquinas o papel de ferramenta: auxílio em investigações, análise de dados, traduções. Em geral com a ressalva de que, em algum momento, o processo tem que passar pelos olhos de alguém que respira.

Um item curioso na lista do Estadão é a permissão de usar IA na elaboração de títulos, sobretudo para aproximá-los dos critérios estabelecidos pelos mecanismos de busca. Quem sabe evitará enunciados como este, de quinta-feira (23), sobre educação: "Quanto cresceria o PIB do Brasil com mais ensino técnico? Estudo inédito revela potencial da mudança". O título não responde à pergunta que propõe, uma estratégia sempre condenável, mas cada vez mais frequente em jornais. Parente do "entenda..." e do "veja...", que criam uma expectativa de informação no lugar de simplesmente informar.

Títulos são cruciais no jornalismo, mas também se tornam medíocres sob os algoritmos. Não bastassem as fórmulas de audiência, qualquer grande notícia, em questão de horas, ganha os mesmos contornos nos vários concorrentes. E a corrida volta ao ponto de partida agora, quando a busca turbinada com IA prescinde do conteúdo tão trabalhado das manchetes, pois consegue pescar a informação desejada dos próprios textos.

Um papagaio verde com óculos escuros. O fundo é branco.
Folhapress

Se a forma já era, restam as sutilezas. Leitores e redes sociais reclamam dos títulos da Folha que denunciam malfeitos do "ministro de Lula". "Não fosse ministro, o jornal escreveria ‘amigo de Lula’", ironiza um deles. Juscelino Filho, porém, é ministro e ao mesmo tempo ônus que Lula decidiu carregar por governabilidade. É evidente que o jornal explora a situação, mas ela já estava posta antes de o deputado ser indicado para a pasta.

Seria mais fácil criticar a Folha pelo noticiário requentado sobre estatais, "que voltam a ter déficit sob Lula 3". Quando o robô do Google ler o texto, verá que mais da metade das empresas fechará no azul e que mais de 80% do rombo é obra da empresa que a Marinha usa para brincar de submarino; se pesquisar em outras reportagens sobre o tema, saberá que a comparação com anos anteriores é prejudicada por um esqueleto deixado pela privatização da Eletrobras. Tomar o todo pelas partes é sempre complicado.

Também nesse quesito se destaca o noticiário inicial sobre a PEC que fechou o tempo entre Senado e STF. "Senadores aprovam PEC que limita decisões do Supremo", escreveu a Folha na Primeira Página. Não foram limitadas as decisões do STF, apenas as monocráticas, e a diferença entre as duas coisas está no cerne da discussão. Como escreveu Conrado Hubner Mendes, ministros do STF "tentam induzir confusão entre ‘reduzir poderes do STF’ e ‘reduzir poderes de ministros do STF’". A generalização que o jornal fez é temerária, pois assume o argumento de um dos lados da contenda. Em cobertura de assunto com grande capacidade de estrago, teria sido prudente começar de maneira mais equilibrada.

Outro caso é distante, mas exemplar da arapuca que se tornou o exercício de comunicação nos termos estabelecidos atualmente. Um homem saiu esfaqueando mulheres e crianças em frente a uma escola em Dublin. Grupos de extrema direita relacionaram o atentado à questão imigratória e alimentaram protestos pela cidade, que viveu noite de violência. O título da Folha foi "Irlanda tem protesto violento contra imigrantes após ataque a faca que feriu 5".

Se o robô do Google ficasse só nesse enunciado, intuiria que imigrantes eram alvo e perpetradores. A história, porém, ainda era uma ocorrência policial, não terrorismo, na hora do ataque. Coisa de "maluco", segundo o cidadão que interrompeu o atentado, um motoboy brasileiro que passava pelo local e usou seu capacete contra o agressor. O país acordou com um imigrante nas manchetes, só que no papel de herói. Dava para fugir do título publicado pela Folha? O perverso aqui é notícia e fake news, mesmo que indiretamente, concorrerem.

"Manifestantes entram em choque com a polícia em Dublin após crianças serem feridas em ataque a faca", noticiou The New York Times, sem citar imigrantes nem mesmo no subtítulo de sua reportagem.

Enquanto o robô do Google deixar, talvez seja o caso de manter ativa a velha ourivesaria de fazer títulos.

,O que explica a demora de Lula nas nomeações para a PGR e o STF, Bruno Boghossian, FSP

 Quando o PT foi às cordas no auge da Lava Jato, um conselheiro de Lula lamentou que o partido tivesse negligenciado o Ministério Público Federal. Para esse petista, os quadros e a cúpula do órgão haviam sido preenchidos com procuradores que estavam muito mais distantes da sigla do que seus dirigentes gostariam.

Aquele era um aliado de Lula que, além de denunciar abusos nas investigações, reconhecia a existência de esquemas de corrupção em governos do partido. Ainda assim, ele apontava que os petistas haviam ficado no prejuízo por não terem conseguido estabelecer uma boa rede de interlocução no MPF após 14 anos no poder.

O cenário se reflete na longa novela protagonizada por Lula para escolher o novo chefe da Procuradoria-Geral da República. A desconfiança particular do presidente após a Lava Jato fez com que ele abandonasse a tradição de nomear o primeiro colocado da lista tríplice elaborada por integrantes do órgão. Mas a decisão não resolveu o problema.

Lula nunca teve um candidato natural para o posto e encontrou dificuldade até para formar uma lista de nomes que se alinhassem às bandeiras do partido. O vácuo permitiu que Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes emplacassem Paulo Gonet com um favoritismo que enfrentou a hesitação do presidente.

Para preencher a vaga de Rosa Weber no STF, não faltam candidatos, mas Lula mantém a cadeira no tribunal vazia há quase dois meses. Em seus primeiros mandatos, o petista terceirizava a escolha de ministros do tribunal. Auxiliares com bom trânsito no meio jurídico tocavam o processo, e o presidente praticamente só assinava a indicação.

Os anos da Lava Jato também deixaram marcas que ajudam a explicar parte da demora. Lula já manifestou o que considera uma decepção com ministros nomeados pelo PT (sendo Dias Toffoli o mais simbólico) e passou a tratar a indicação como uma questão de vida ou morte. Foi o que levou Cristiano Zanin ao tribunal e agora aproxima Flávio Dino ou Jorge Messias de uma cadeira.

Sendo estrangeira, é fácil apontar o que há de errado nos EUA, FSP


Fernanda Perrin
Fernanda Perrin

Correspondente nos EUA, foi editora-adjunta de Mercado. É mestre em ciência política pela USP.

"Sem uma forma de nomear a nossa dor, nós também ficamos sem as palavras para articular o nosso prazer."

Há algumas semanas li essa frase, escrita por bell hooks em 1992, e sinto que tem algo de sussurrado, para além do contraste mais óbvio, que eu ainda não consegui escutar.

Estou morando nos Estados Unidos há quatro meses. É muito fácil apontar meu dedinho latino-americano para tudo o que acho errado aqui: as bananas não têm gosto, a transferência bancária, tarifada, ainda demora mais de um dia, e a cerveja no bar custa US$ 9, mais gorjeta e taxas –são R$ 50 em um copinho, faço questão de converter para você, leitor.

Talvez a moral da história seja que o álcool é barato demais no Brasil (não me cancelem), e que o Pix precisa ser exportado (Venmo não chega aos pés), mas não é bem disso que quero falar.

É que tenho me dado conta das coisas bonitas. Da menina na praça que, diante de uma estátua terrível de Lincoln ao lado de um homem negro ajoelhado a seus pés, não quis saber do presidente, mas sim o nome do homem.

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Da entonação cantarolante do maquinista do trem entre Washington e Nova York ao anunciar a próxima estação, fazendo quase todo mundo no vagão cair na risada.

Do jeito quase infantil de conversar, não porque bobo, mas algo ingênuo e muito sincero.

Volto para bell hooks. A frase estava uma das salas do MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Nela, havia também uma instalação curiosa: três portas brancas, desgastadas.

O que mais chamava atenção é que, apoiada em cada uma, havia um taco de beisebol. Segundo a artista, Diamond Stingily, era assim na casa de sua avó, em Chicago.

Há algo sobre esse emaranhado de violência e ternura, sedução e desencaixe, saudade e curiosidade que diz muito sobre a experiência de viver neste país enquanto estrangeiro. Perceber que a porta que abre para fora também abre dentro —só precisa deixar o taco para trás (mas não a peixeira).

Estátua de Abraham Lincoln e um homem escravizado, em Washington - Brendan Smialowski/AFP