domingo, 29 de março de 2020

Marcos Lisboa Oportunismo, FSP

Disputas miúdas na política dificultam o diálogo

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O Brasil entrou enfraquecido nesta crise. As disputas miúdas na política dificultam o diálogo e a construção de soluções coordenadas.
A mediocridade da economia reflete as muitas dificuldades que as empresas enfrentam há anos, o que agrava o impacto da parada súbita da atividade.
O setor público encontra-se engessado pelas despesas obrigatórias. Como resultado, estados e municípios pedem novos esforços da população e recursos do Tesouro Nacional, em parte para pagar a sua folha de pessoal nestes tempos de queda de receita.
É urgente cuidar da saúde, mesmo que implique aumento da dívida pública. Os novos meios de pagamento ("maquininhas") podem ser utilizados para transferir recursos públicos para os micro e pequenos empreendedores.
É preciso, porém, separar o joio do trigo. Existem muitos pedidos justificados, mas também há casos de oportunismo.
O Tesouro Nacional não é um manancial inesgotável. Sem gestão adequada, a dívida crescente, já uma das maiores entre os países emergentes, pode resultar em prolongada depressão.
O país empobreceu. Os acionistas perderam metade ou mais do seu patrimônio, pequenos comerciantes devem quebrar, trabalhadores informais estão sem renda.
A queda da arrecadação é o efeito colateral de uma sociedade mais pobre e que, portanto, pode pagar menos tributos. O setor público deveria saber que precisa fazer a sua parte, cortando gastos obrigatórios para contribuir com as despesas emergenciais.
Não é o que está acontecendo. Governadores pedem ao Tesouro, isto é, à sociedade, que compense a queda de receita, com estimativas que parecem superestimadas. Além disso, ficam a inventar novas formas de onerar as empresas. Parecem dizer: "setor privado, você paga pela política social enquanto eu aumento a dívida pública para preservar a renda dos servidores".
Enquanto isso, os Legislativos e Judiciários dos estados têm fundos com bilhões em caixa. Não seria o caso de utilizar esses recursos, que foram arrecadados da sociedade, para auxiliar no combate à pandemia?
Se o Estado brasileiro não é capaz de se ajustar à realidade, então há algo de muito errado com as nossas regras. Como defender o direito adquirido dos servidores em um país que recorrentemente aumenta a carga tributária, onerando cada vez mais o setor privado, ainda mais em uma crise desta proporção? Quem ganha mais de R$ 30 mil está entre o 1% com maior renda.
O poder público deveria, como o resto do Brasil, contribuir com sua cota de sacrifício e cuidar dos grupos de riscos e das famílias mais vulneráveis, que são as vítimas principais deste cataclismo, e não compactuar com o corporativismo.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Para quando as celas se abrirem, Ruy Castro, FSP

Nossa sede de expressão não pode se limitar ao sustento de hoje e amanhã

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O romancista Théo-Filho (1895-1973) foi um dos escritores do Rio dos anos 20 que exploraram a questão social do Brasil e deixaram muito material sobre sua época. Assim como Julia Lopes de Almeida, Carmen Dolores, João do Rio e Orestes Barbosa, interessou-se pelas condições dos prisioneiros da Casa de Detenção, a maior penitenciária do país e tão desumana quanto as de hoje. Théo-Filho frequentou-a inclusive na condição de presidiário, em 1916, encarcerado por reagir armado a uma agressão na rua.
Nos três meses que levou na Detenção, escreveu o livro "Do Vagão-Leito à Prisão". Pôde fazer isso confortavelmente, porque seus amigos lhe levavam penas, papel e tinteiros —ainda raras as "canetas de tinta". Mas Théo-Filho dividia o material com seus colegas de cela que também queriam escrever, os "poetas da prisão". Alguns, quase analfabetos, usavam o que tivessem à mão para se expressar.
Escreviam a lápis nos papéis amarrotados que encontravam, nas costas dos maços de cigarros, abertos e esticados, ou nas margens dos jornais que alguém esquecia por lá. Quando o lápis se reduzia a um toco pouco maior que suas unhas, escreviam a giz no chão ou a carvão nas paredes e, em último caso, com as próprias unhas, que ninguém lhes vinha cortar. O importante era escrever, quase sempre um soneto sobre a mulher que tinham perdido ou que os abandonara.
Neste momento, também somos prisioneiros. Por sorte, não nos faltam tinta, canetas, teclados. Não temos de escrever com as unhas nas paredes. Por isso, nossa sede de expressão não pode se curvar às atuais limitações do mercado.
Pintores, músicos, atores, poetas e estudiosos das várias disciplinas precisamos continuar a tentar produzir, ainda que para nós mesmos, para os vizinhos ou para as redes sociais. E não só para o sustento de hoje e amanhã. Temos de estar prontos para quando as celas se abrirem.
Livro "Do Vagão Leito à Prisão", do escritor Théo-Filho
Livro "Do Vagão Leito à Prisão", do escritor Théo-Filho (1895-1973) - Heloísa Seixas
Ruy Castro
Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.