quinta-feira, 26 de março de 2020

O QUE A FOLHA PENSA Presidente, retire-se

Equipes técnicas da Saúde e da área econômica deveriam liderar a gestão da crise

  • 80
O presidente Jair Bolsonaro, durante pronunciamentem cadeia de rádio e TV - Reprodução
Diante da magnitude dos esforços necessários para mitigar os efeitos devastadores da epidemia do coronavírus sobre a saúde e a economia do Brasil, será preciso encontrar meios de anular, e logo, a capacidade de Jair Bolsonaro de estorvar a mobilização de guerra necessária para atravessar, com os menores danos possíveis, este episódio dramático da vida nacional.
Nesta terça (24), em cadeia de rádio e TV, ele mostrou mais uma vez que não aprende nem se cala.
Não aprende as lições da ciência e dos técnicos em saúde pública de todo o mundo e de seu próprio governo. Não se cala para evitar a propagação das estultices que povoam a sua mente apalermada.
Tudo o que o Brasil não precisa neste momento é de um presidente que estimula a divisão e atrapalha a coordenação de diagnósticos e estratégias municipais, estaduais e federais contra a doença e o empobrecimento num país continental de 210 milhões de habitantes.
O país tampouco pode perder tempo com brigas políticas entre o chefe de Estado e governadores, entre Executivo e o Congresso.
Manter o máximo de pessoas em casa nesta primeira fase, ao mesmo tempo em que se expande a capacidade das emergências hospitalares, será crucial para diminuir as mortes evitáveis.
Investir desde já na ampliação da testagem rápida, da busca ativa de infectados e do estoque de drogas que venham a se mostrar eficazes reduzirá o ônus para a saúde e a economia numa segunda etapa, quando os confinamentos mais duros forem levantados.
As ondas de contágio e fatalidades, que se concentram agora nas áreas metropolitanas de São Paulo e do Rio, começam a caminhar para outras regiões. É preciso planejamento e concatenação entre autoridades para lidar com esse espectro de picos epidêmicos em diferentes estágios ao longo do território brasileiro durante meses.
Na economia, urge construir e estender linhas inéditas de socorro à renda e aos empregos dos mais vulneráveis. O déficit e a dívida deverão subir, mas seria ingênuo imaginar que essa expansão não teria limites, mesmo se o Brasil fosse país rico.
Para articular, com respeito ao conhecimento sanitário e econômico, todos esses esforços extraordinários, Bolsonaro precisa delegar poderes a uma força-tarefa que reúna as equipes técnicas da Saúde e da área econômica e dialogue com Congresso e governadores.
Que se forme um núcleo de governabilidade capaz de deixar em segundo plano as sandices do presidente, e que os políticos tenham a grandeza de suspender suas vaidades e projetos eleitorais por ora.
Assim deveriam transcorrer as próximas semanas, que serão decisivas para uma ponderação dos efeitos das providências já tomadas na preservação de vidas e na subsistência das famílias.

Sérgio Rodrigues Numa hora dessas?, FSP

É difícil curtir a demência de Dom Quixote diante de um demente real

  • 1
Eu tinha uma coluna bastante adiantada, falando da quarentena como oportunidade única (mas será mesmo?) de mergulhar na leitura daqueles livros tão adiados, quando Jair Bolsonaro fez seu já imortal pronunciamento de terça-feira (24).
Nele, o pior presidente da República do mundo no combate à pandemia —eleito por aclamação, palavrões e gargalhadas incrédulas ao redor do globo— tratou de deixar claro até para quem é lerdo na compreensão que o vírus é o segundo maior problema enfrentado pelo Brasil. O primeiro é Jair Bolsonaro.
Depois de ir à varanda para destruir um jogo de panelas e o que resta das minhas cordas vocais, meu impulso foi desistir da coluna sobre ler na quarentena. Isso lá é hora de se entregar a Proust, meu filho?
Que importância tem a demência cômica de Dom Quixote diante de um demente real —e letal? Em resumo, nas palavras do mestre Verissimo: poesia numa hora dessas?
Pensando um pouco mais, me dei conta de que ser governado por um sujeito tão desprovido de valor intelectual, moral e humano na hora mais desafiadora para a espécie desde a Segunda Guerra Mundial é um agravante e tanto, mas não a causa do problema.
O presidente da República, Jair Bolsonaro
O presidente da República, Jair Bolsonaro - Pedro Ladeira - 20.mar.2020/Folhapress
Ainda que tivéssemos por aqui uma Angela Merkel, muita gente estaria descobrindo, como eu e vários amigos que são excelentes leitores, que a ideia de aproveitar o atual isolamento social para mergulhar fundo nos livros soa melhor do que é.
Sim, há indícios de que a fartura de listas com dicas literárias que ornamenta nossa quarentena tem caído em grande parte no vazio.
Os leitores que andam se sentindo travados falam em ansiedade, falta de concentração. Excesso de notícia e rede social. Campo gravitacional do hoje, do agora, forte demais para deixar qualquer ideia atemporal alçar voo.
Tudo isso faz sentido. A pandemia abala os pilares da normalidade, tanto no plano individual quanto no social. Alertas, em compasso de espera, sabemos que a dor, o luto e a miséria terão escala épica. A sensação é a de viver entre parênteses, num tempo fora do tempo.
No entanto, embora seja uma culpada óbvia da dificuldade de mergulhar em “Guerra e Paz” ou “Ulisses” quando o momento parecia tão propício a tais maratonas do espírito, acredito que a ansiedade não explique tudo.
Além de um estado de perturbação emocional provocado por perigos reais ou imaginários (no caso, muito mais reais que imaginários), vejo nessa equação um componente racional, quase sereno, mas não menos danoso à curtição literária.
Falo da convicção de que o eixo das coisas está prestes a se deslocar de forma ainda imprevisível, talvez sutil, mas de todo modo decisiva. Isso provoca uma espécie de suspensão temporária da validade de todas as molduras de leitura do mundo disponíveis na bagagem.
Tenho um amigo que, quando chegou a pandemia, interrompeu o romance policial que estava escrevendo. “O que são ou serão um punhado de assassinatos depois disso?”, ele se pergunta.
Não se trata de dizer que os cadáveres ficcionais serão insignificantes após a safra macabra de 2020. Só não dá para saber agora, neste tempo entre parênteses, que peso eles terão. E qual será a voz mais adequada para tratar deles.
Escrever —como, em grande medida, ler, que é sempre uma forma de coautoria— exige encontrar uma sintonia fina que neste momento cheio de estática pode ser simplesmente inencontrável. Sendo assim, melhor esperar.
Se possível em casa, é claro.

Bolsonaro não está à altura, Fernando Dantas, OESP

Fernando Dantas
25 de março de 2020 | 17h18

O dilema entre paralisar a economia para combater a epidemia de coronavírus ou tentar isolar apenas os grupos de maior risco, reduzindo muito a perda econômica, é uma questão real e legítima.
Não há a menor dúvida de que uma recessão catastrófica, em um país de renda média e desigual como o Brasil, pode ter consequências sociais comparáveis à morte de dezenas de milhares de pessoas, só que mais espalhadas no tempo.
Populações vulneráveis morrem pelas precárias condições de saúde, pela falta de saneamento, pela violência que o tráfico e as milícias impõem aos territórios onde os pobres vivem etc. Uma recessão violenta ajuda a reproduzir para as novas gerações essas condições precárias e injustas que aumentam a mortalidade dos vulneráveis.
Mesmo quando se sai da macabra contabilidade dos mortos, é possível dizer que uma queda violenta do PIB significa o empobrecimento abrupto e em massa da maioria dos brasileiros, reforçando as condições insatisfatórias em que grande parte da população vive.
Voltando ao início desta coluna, é legítimo se preocupar com o “trade off” entre salvar vidas e salvar a economia, porque salvar a economia também significa salvar vidas e preservar a sua qualidade.
As declarações e os movimentos que o presidente Jair Bolsonaro vem fazendo em relação a esse dilema, no entanto, são talvez um dos pontos mais baixos da nossa história presidencial republicana.
A primeira razão é que o dilema entre salvar vidas e salvar a economia não caiu do céu para o Brasil resolver. Ele está sendo vivenciado na prática por muitos países, entre eles alguns dos mais desenvolvidos e com enorme capacidade de mobilizar inteligência e informação sobre o assunto.
Como no caso do aquecimento global, mas de forma emergencial e velocíssima, vai se formando um consenso, ainda que provisório e sujeito a mudanças, sobre como se lidar com a crise do coronavírus.
O Reino Unido, por exemplo, que de início se inclinou para o modelo de isolar grupos de risco, fez um cavalo de pau quando estudos mostraram que havia risco relevante de um quadro catastrófico em termos de perdas de vidas humanas.
A razão é relativamente simples. A combinação entre o poder de contágio e a taxa de letalidade do coronavírus tende a criar um volume de pacientes em estado grave, necessitando de UTI e respiradores, muito acima da atual capacidade hospitalar na maioria dos países.
Se o problema fosse acontecer daqui a seis meses, países ricos e de renda média possivelmente teriam tempo suficiente para convocar emergencialmente recursos financeiros e humanos para criar aquela capacidade.
No caso da Covid-19, no entanto, como mostram os casos da Itália e da Espanha, dias podem fazer uma diferença enorme em termos de número de fatalidades. Simplesmente, não há tempo e é preciso conter o ritmo de disseminação da epidemia. E a única forma de fazer isso é manter as pessoas em casa, o que significa, sim, um enorme custo econômico.
Na maior parte dos países, o que se faz agora é unir governos, empresários, sistemas políticos e sociedade civil para reagir da forma mais intensa possível para mitigar os efeitos econômicos da quarentena em massa. Na área de saúde pública, esforço equivalente é feito para reduzir ao máximo o prazo necessário de quarentena maciça.
Esse esforço, na vertente econômica, tem duas grandes ênfases. A principal é poupar ao máximo os mais vulneráveis. A segunda é criar maneiras de que o sistema econômico pare sem entrar em colapso total (quebradeira em massa de empresas, desemprego gigante etc.), de tal forma que, levantada a quarentena (o que pode ser um processo gradual), a economia possa se recuperar o mais rápido possível.
É quase impossível listar o imenso rol de medidas já tomadas em todo mundo por bancos centrais, governos, parlamentos, empresas e associações empresariais, mundo acadêmico e entidades do setor civil para buscar aqueles dois objetivos.
No Brasil, inclusive, a despeito das declarações de Bolsonaro, muito já foi realizado e ainda será feito na mesma direção.
Mas o pior nas atitudes recentes do presidente nem é propriamente a sua visão equivocada sobre como agir na crise do coronavírus, mas sim a forma tosca, vulgar e por vezes aparentemente perversa de lidar com o um dilema que, em si mesmo, é legítimo.
Quando chama uma doença com o potencial de matar milhões de “gripezinha”; quando, tendo mais de 60 anos e estando no grupo de maior risco, diz que não se preocupa porque foi atleta; quando, aos berros e descontrolado, insulta o governador de São Paulo, João Doria, numa reunião televisada, falando explicitamente em disputas eleitorais; quando ataca a imprensa e outros governadores; quando, na fase mais aguda da crise, deixa correr rumores sobre insatisfação com os seus ministros encarregados de lidar justamente com saúde pública e economia; Bolsonaro dá um exemplo de tudo o que significa não ser um líder à altura de governar o País neste momento.
Em vez da serenidade firme e tranquilizadora que se espera de um chefe, em vez da capacidade de se elevar para além das brigas comezinhas do dia a dia diante de uma ameaça maior, o presidente, ao contrário, mergulha com mais força ainda nos aspectos mais sombrios da sua personalidade política: a beligerância constante, desmedida e imotivada; a paranoia; a disputa de poder mesquinha de quem nunca saiu do baixo clero mental; a tendência a dividir na hora em que deveria haver união.
O Brasil vive um momento gravíssimo e, infelizmente, tem um presidente que não está, nem de longe, à altura do desafio.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 25/3/2020, quarta-feira.