É difícil curtir a demência de Dom Quixote diante de um demente real
Eu tinha uma coluna bastante adiantada, falando da quarentena como oportunidade única (mas será mesmo?) de mergulhar na leitura daqueles livros tão adiados, quando Jair Bolsonaro fez seu já imortal pronunciamento de terça-feira (24).
Nele, o pior presidente da República do mundo no combate à pandemia —eleito por aclamação, palavrões e gargalhadas incrédulas ao redor do globo— tratou de deixar claro até para quem é lerdo na compreensão que o vírus é o segundo maior problema enfrentado pelo Brasil. O primeiro é Jair Bolsonaro.
Depois de ir à varanda para destruir um jogo de panelas e o que resta das minhas cordas vocais, meu impulso foi desistir da coluna sobre ler na quarentena. Isso lá é hora de se entregar a Proust, meu filho?
Que importância tem a demência cômica de Dom Quixote diante de um demente real —e letal? Em resumo, nas palavras do mestre Verissimo: poesia numa hora dessas?
Pensando um pouco mais, me dei conta de que ser governado por um sujeito tão desprovido de valor intelectual, moral e humano na hora mais desafiadora para a espécie desde a Segunda Guerra Mundial é um agravante e tanto, mas não a causa do problema.
Ainda que tivéssemos por aqui uma Angela Merkel, muita gente estaria descobrindo, como eu e vários amigos que são excelentes leitores, que a ideia de aproveitar o atual isolamento social para mergulhar fundo nos livros soa melhor do que é.
Sim, há indícios de que a fartura de listas com dicas literárias que ornamenta nossa quarentena tem caído em grande parte no vazio.
Os leitores que andam se sentindo travados falam em ansiedade, falta de concentração. Excesso de notícia e rede social. Campo gravitacional do hoje, do agora, forte demais para deixar qualquer ideia atemporal alçar voo.
Tudo isso faz sentido. A pandemia abala os pilares da normalidade, tanto no plano individual quanto no social. Alertas, em compasso de espera, sabemos que a dor, o luto e a miséria terão escala épica. A sensação é a de viver entre parênteses, num tempo fora do tempo.
No entanto, embora seja uma culpada óbvia da dificuldade de mergulhar em “Guerra e Paz” ou “Ulisses” quando o momento parecia tão propício a tais maratonas do espírito, acredito que a ansiedade não explique tudo.
Além de um estado de perturbação emocional provocado por perigos reais ou imaginários (no caso, muito mais reais que imaginários), vejo nessa equação um componente racional, quase sereno, mas não menos danoso à curtição literária.
Falo da convicção de que o eixo das coisas está prestes a se deslocar de forma ainda imprevisível, talvez sutil, mas de todo modo decisiva. Isso provoca uma espécie de suspensão temporária da validade de todas as molduras de leitura do mundo disponíveis na bagagem.
Tenho um amigo que, quando chegou a pandemia, interrompeu o romance policial que estava escrevendo. “O que são ou serão um punhado de assassinatos depois disso?”, ele se pergunta.
Não se trata de dizer que os cadáveres ficcionais serão insignificantes após a safra macabra de 2020. Só não dá para saber agora, neste tempo entre parênteses, que peso eles terão. E qual será a voz mais adequada para tratar deles.
Escrever —como, em grande medida, ler, que é sempre uma forma de coautoria— exige encontrar uma sintonia fina que neste momento cheio de estática pode ser simplesmente inencontrável. Sendo assim, melhor esperar.
Se possível em casa, é claro.
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