Fernando Dantas
25 de março de 2020 | 17h18
O dilema entre paralisar a economia para combater a epidemia de coronavírus ou tentar isolar apenas os grupos de maior risco, reduzindo muito a perda econômica, é uma questão real e legítima.
Não há a menor dúvida de que uma recessão catastrófica, em um país de renda média e desigual como o Brasil, pode ter consequências sociais comparáveis à morte de dezenas de milhares de pessoas, só que mais espalhadas no tempo.
Populações vulneráveis morrem pelas precárias condições de saúde, pela falta de saneamento, pela violência que o tráfico e as milícias impõem aos territórios onde os pobres vivem etc. Uma recessão violenta ajuda a reproduzir para as novas gerações essas condições precárias e injustas que aumentam a mortalidade dos vulneráveis.
Mesmo quando se sai da macabra contabilidade dos mortos, é possível dizer que uma queda violenta do PIB significa o empobrecimento abrupto e em massa da maioria dos brasileiros, reforçando as condições insatisfatórias em que grande parte da população vive.
Voltando ao início desta coluna, é legítimo se preocupar com o “trade off” entre salvar vidas e salvar a economia, porque salvar a economia também significa salvar vidas e preservar a sua qualidade.
As declarações e os movimentos que o presidente Jair Bolsonaro vem fazendo em relação a esse dilema, no entanto, são talvez um dos pontos mais baixos da nossa história presidencial republicana.
A primeira razão é que o dilema entre salvar vidas e salvar a economia não caiu do céu para o Brasil resolver. Ele está sendo vivenciado na prática por muitos países, entre eles alguns dos mais desenvolvidos e com enorme capacidade de mobilizar inteligência e informação sobre o assunto.
Como no caso do aquecimento global, mas de forma emergencial e velocíssima, vai se formando um consenso, ainda que provisório e sujeito a mudanças, sobre como se lidar com a crise do coronavírus.
O Reino Unido, por exemplo, que de início se inclinou para o modelo de isolar grupos de risco, fez um cavalo de pau quando estudos mostraram que havia risco relevante de um quadro catastrófico em termos de perdas de vidas humanas.
A razão é relativamente simples. A combinação entre o poder de contágio e a taxa de letalidade do coronavírus tende a criar um volume de pacientes em estado grave, necessitando de UTI e respiradores, muito acima da atual capacidade hospitalar na maioria dos países.
Se o problema fosse acontecer daqui a seis meses, países ricos e de renda média possivelmente teriam tempo suficiente para convocar emergencialmente recursos financeiros e humanos para criar aquela capacidade.
No caso da Covid-19, no entanto, como mostram os casos da Itália e da Espanha, dias podem fazer uma diferença enorme em termos de número de fatalidades. Simplesmente, não há tempo e é preciso conter o ritmo de disseminação da epidemia. E a única forma de fazer isso é manter as pessoas em casa, o que significa, sim, um enorme custo econômico.
Na maior parte dos países, o que se faz agora é unir governos, empresários, sistemas políticos e sociedade civil para reagir da forma mais intensa possível para mitigar os efeitos econômicos da quarentena em massa. Na área de saúde pública, esforço equivalente é feito para reduzir ao máximo o prazo necessário de quarentena maciça.
Esse esforço, na vertente econômica, tem duas grandes ênfases. A principal é poupar ao máximo os mais vulneráveis. A segunda é criar maneiras de que o sistema econômico pare sem entrar em colapso total (quebradeira em massa de empresas, desemprego gigante etc.), de tal forma que, levantada a quarentena (o que pode ser um processo gradual), a economia possa se recuperar o mais rápido possível.
É quase impossível listar o imenso rol de medidas já tomadas em todo mundo por bancos centrais, governos, parlamentos, empresas e associações empresariais, mundo acadêmico e entidades do setor civil para buscar aqueles dois objetivos.
No Brasil, inclusive, a despeito das declarações de Bolsonaro, muito já foi realizado e ainda será feito na mesma direção.
Mas o pior nas atitudes recentes do presidente nem é propriamente a sua visão equivocada sobre como agir na crise do coronavírus, mas sim a forma tosca, vulgar e por vezes aparentemente perversa de lidar com o um dilema que, em si mesmo, é legítimo.
Quando chama uma doença com o potencial de matar milhões de “gripezinha”; quando, tendo mais de 60 anos e estando no grupo de maior risco, diz que não se preocupa porque foi atleta; quando, aos berros e descontrolado, insulta o governador de São Paulo, João Doria, numa reunião televisada, falando explicitamente em disputas eleitorais; quando ataca a imprensa e outros governadores; quando, na fase mais aguda da crise, deixa correr rumores sobre insatisfação com os seus ministros encarregados de lidar justamente com saúde pública e economia; Bolsonaro dá um exemplo de tudo o que significa não ser um líder à altura de governar o País neste momento.
Em vez da serenidade firme e tranquilizadora que se espera de um chefe, em vez da capacidade de se elevar para além das brigas comezinhas do dia a dia diante de uma ameaça maior, o presidente, ao contrário, mergulha com mais força ainda nos aspectos mais sombrios da sua personalidade política: a beligerância constante, desmedida e imotivada; a paranoia; a disputa de poder mesquinha de quem nunca saiu do baixo clero mental; a tendência a dividir na hora em que deveria haver união.
O Brasil vive um momento gravíssimo e, infelizmente, tem um presidente que não está, nem de longe, à altura do desafio.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 25/3/2020, quarta-feira.
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