quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Trudeau e a democracia incapaz de aprender, Fernando Schüler. FSP

Debate sobre 'blackface' do primeiro-ministro canadense explicita ausência de diálogo

O Canadá terá eleições daqui a algumas semanas e o primeiro-ministro, Justin Trudeau, encara um enorme problema. Os fatos são conhecidos.
Duas décadas atrás, em festas à fantasia, ele costumava fazer “blackface”. Em uma delas, fantasiou-se de Aladin; em outra, surge com uma cabeleira negra e o rosto pintado, mostrando a língua.
As imagens caíram como uma bomba sobre a política canadense, e o problema está longe de ser resolvido. Trudeau constituiu sua figura pública como a mais genuína expressão do Canadá multicultural.
O homem feminista, progressista e campeão do politicamente correto. Por óbvio, não faz sentido associar Trudeau a políticas discriminatórias. Mas as imagens estão lá.
Fotografia de 2001 mostra o premiê canadense, Justin Trudeau, com 'blackface' - Reprodução
Trudeau pediu desculpas ao país e disse que não se lembrava exatamente quantas vezes havia pintado o rosto de negro. Não dá pra saber como o eleitorado canadense irá reagir a tudo isso, nas eleições. Mas este não é o ponto. O interessante é perguntar o que este episódio tem a nos ensinar sobre o mundo político e a democracia, nos dias que correm.
A primeira lição me faz recordar do professor Anthony Appiah e seu argumento sobre as revoluções morais, em nossa época. Assim como a escravidão, em algum momento no início do século 19, na Inglaterra, e a prática dos duelos, tempos depois, tornaram-se moralmente intoleráveis, o mesmo ocorre, em um ritmo possivelmente muito mais acelerado, com o deboche de traço racial.
No espaço de apenas uma geração, que vai da juventude à maturidade de Trudeau, move-se a fronteira entre o desculpável e o inaceitável. Trudeau diz que não sabia do traço racista do “blackface”. É possível. Como bem disse João Pereira Coutinho, é razoável dar a ele o benefício da dúvida
A maioria das pessoas não agirá assim. Coutinho é um intelectual liberal e  tolerante. O mundo de hoje anda povoado por pequenos Torquemadas. Para boa parte deles, o julgamento de Trudeau já está feito. 
Surge aqui um ponto intrigante: é razoável julgar o passado a partir dos padrões e da régua moral da época atual? Julgar Monteiro Lobato por seu jeito de tratar Tia Nastácia? Ou os Trapalhões, pelas piadas com o Mussum? Seria preciso limpar a cultura de toda esta impureza. Proibir sua veiculação, retirar das bibliotecas, reescrever tudo com as palavras adequadas, e fazer isso a cada novo ciclo moral? 
Estas questões ganharam escala na democracia atual. A conexão digital fez com que todos passássemos, subitamente, a viver juntos, e criou um universo algo assustador de vigilância coletiva. Em parte, é disso que trata o politicamente correto: a lógica da regra democrática sobre a expressão individual. Sobre os usos da linguagem, o humor, o jeito de vestir. Qualquer coisa que se mova, possa ferir a sensibilidade alheia e ganhe dimensão pública.
O universo digital criou um problema a mais: um ecossistema em que toda informação é guardada e nos assombra, dia após dia. Uma grande máquina de não esquecimento. É assim que retorna, eleição após eleição, a fala infeliz de Lula sobre Pelotas (RS), quase duas décadas atrás, e os exemplos poderiam ser muitos. Com Trudeau não é diferente. 
Antes que alguém julgue se isso é bom ou ruim, digo que é apenas o novo normal da democracia digital. Toneladas de informação fora de contexto, acertos ou erros, informação irrelevante sobre qualquer assunto.
Nietzsche definia o esquecimento como uma condição para a renovação da vida. A faculdade que nos permite limpar o terreno e começar de novo. Nossa democracia vai na direção oposta. Funciona como um imenso terreno baldio em que nada se joga fora, e cada passo à frente nos atira de volta ao passado. 
Confesso não ter uma solução para o caso Trudeau, mas me permito lembrar de uma história. Em um dia de julho de 2009, Henry Louis Gates, professor negro de Harvard, chegou em casa e percebeu que havia esquecido as chaves. Quando arrombava a própria porta para entrar, foi preso pelo policial branco James Crowley. O caso tinha evidentes conotações raciais e ganhou repercussão nacional.
Antes que tudo virasse um choque retórico e jurídico, o recém empossado presidente Obama convidou a ambos, Gates e Crowley, para uma amigável cerveja nos jardins da Casa Branca, onde poderiam discutir o assunto e entender o que havia acontecido. Para que tudo aquilo não virasse mais um episódio banal da guerra racial americana, mas uma chance de aprender alguma coisa. 
E foi assim que aconteceu. O gesto de Obama é um ponto suspenso no vazio de um mundo que, mesmo fazendo com que todos vivam súbita e intensamente juntos, parece ter perdido o gosto de dialogar e aprender.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

Reprovado 7 vezes no trainee da Ambev, empresário vende consultoria de RH por R$ 70 mi, OESP



O início profissional de Paulo Mendes não foi fácil. Nos fim dos anos 1990, seu objetivo não era diferente da maioria dos aspirantes a executivos: trabalhar na gigante das bebidas Ambev. O sonho, porém, nunca foi realizado, apesar das sete tentativas de cavar uma oportunidade. Hoje, 20 anos mais tarde, Mendes acabou de vender a 2Get, empresa de recrutamento e seleção que criou há dez anos, para o grupo americano Heidrick & Struggles, em um acordo avaliado em R$ 70 milhões.
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Paulo Mendes, fundador da 2Get Foto: JF Diório/Estadão
“A chance da gente sempre chega”, diz Mendes, de 41 anos, sobre a venda da 2Get, empresa que continuará a liderar mesmo após o acordo com a gigante dos EUA. Com 12 consultores e 50 funcionários, a companhia foi fundada depois que o empresário conseguiu duas oportunidades como executivo: na Votorantim, onde o mineiro iniciou a carreira em São Paulo, e na construtora Tenda.
Após alguns anos na Votorantim, de onde saiu em busca de um negócio que crescesse em maior velocidade, acabou na construtora Tenda, na qual chegou um ano antes da abertura de capital da construtora dedicada ao setor de baixa renda. Foi uma história de fracasso: apesar de a empresa ter feito uma grande abertura de capital, em 2007, e de por algum tempo ter atraído a Gafisa como sócia, o valor do negócio acabou “virando pó”, admite Mendes.
Os custos e a organização de uma operação que crescia vertiginosamente se mostraram muito complexos para a administração da Tenda, diz Mendes. Mas foi na construtora que Mendes teve sua primeira oportunidade realmente relevante na área de recursos humanos. Apesar de atuar como diretor comercial e de marketing, uma de suas funções foi apoiar as contratações. Ele já tinha alguma experiência nisso, graças a uma rápida passagem pela consultoria Michael Page.
“Eu me envolvi em todo o processo, tendo que contratar 900 pessoas em um ano”, lembra. “E, com isso, eu me aproximei de várias consultorias de RH.” Em uma época de bonança econômica, Mendes lembra que teve de construir relacionamentos para conseguir preencher as vagas que oferecia. “A Tenda não era tão atraente, pois era muito mais fácil atrair talentos para companhias como Coca-Cola e Unilever.”

Empreendimento

Além da experiência no mundo do RH, a Tenda também aproximou o empreendedor do fundo Galícia. Em 2009, o Galícia – que tem ex-pesos-pesados justamente da Ambev entre os fundadores – funcionou como uma espécie de investidor-anjo da 2Get.
Ainda antes de o mercado de trabalho descer ladeira abaixo, a 2Get teve de buscar um nicho para se destacar entre um mar de nomes internacionais, como Korn Ferry, Michael Page e a própria Heidrick & Struggles, que agora compra 100% de suas ações. Um dos focos, conta o empresário, foram as companhias familiares, que sempre foram deixadas meio de lado pelas grandes consultorias.
Com essa receita, conseguiu crescer cerca de 40% todos os anos, desde o início de sua operação. Fontes de mercado confirmaram ao Estado confirmaram que a 2Get, antes da aquisição, era a maior empresa de seu ramo de capital 100% nacional, seguida de perto pela Exec, que surgiu mais ou menos na mesma época.
Com a venda de 100% do negócio à Heidrick, a 2Get deverá continuar seguir no nicho em que já atua – a busca de candidatos para cargos de alta gerência e diretoria – e ampliar o investimento em tecnologia. Segundo Mendes, ferramentas desenvolvidas pela companhia permitem a leitura do perfil de um profissional na internet – incluindo o LinkedIn, artigos escritos e comunidades de discussão – via robô, agilizando o processo de contratação.
“É algo importante, pois as empresas de tecnologia começam a roubar o faturamento da indústria de consultoria. Temos de atuar nas duas frentes.”

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Análise: Tergiversação e constrangimento na ONU, Carlos Melo, FSP

Carlos Melo*, O Estado de S. Paulo
24 de setembro de 2019 | 12h26

Coberto de expectativas e incertezas, numa sessão presidida pela Nigéria, o presidente Jair Bolsonaro tomou lugar na tribuna da Assembleia-Geral da ONU. Com muito desgaste, o Brasil ocupou posição central nas atenções do mundo nos últimos meses; o País que sempre teve o que dizer sobre preservação ambiental de repente passou a negar os problemas do clima e transformou-se num dos grandes verdugos do meio ambiente. Esperava-se que o presidente desfizesse esta impressão.
Com efeito, desde a campanha eleitoral, Bolsonaro tem agido de modo no mínimo controverso. Instiga ambientalistas, cientistas, indigenistas, a mídia internacional; de modo arrebatado, nada cauteloso, tem insistido em anunciar um modelo de desenvolvimento que, praticamente, se daria a despeito - ou até ao arrepio - de cuidados com a natureza, indiferente a consequências sociais, políticas, climáticas e ambientais desse tipo de ação. Alheio ao potencial político do tema.
Como assinalou editorial de O Estado, o clima tornou-se uma questão política: “a questão climática é uma das poucas capazes de mobilizar hoje uma juventude crescentemente alheia à política e fechada em suas redes sociais (...) a nenhum governante é permitido ignorar esse fenômeno, que consolida o tema ambiental como o principal tópico político no planeta”. Trata-se do tema internacional de maior sensibilidade política.
Bolsonaro na Assembleia-Geral das Nações Unidas
O presidente Jair Bolsonaro durante seu discurso na Assembleia-Geral das Nações Unidas, em Nova York Foto: EFE/EPA/JASON SZENES
A postura assumida no Brasil, no entanto, não reflete posicionamento isolado nem impensado: Bolsonaro e seus aliados mais próximos têm se alinhado a uma visão internacional tão medieval quanto agressiva, que enxerga a China como o grande inimigo do Ocidente, critica a globalização e, em alguns casos, chega mesmo a negar que a terra seja redonda.
Ao mesmo tempo em que o mundo vivia a expectativa de seu discurso, o Brasil tomava conhecimento do encontro de seu filho, Eduardo, com Steve Bannon - o ex- estrategista de Donald Trump, agitador da direita internacional e hoje persona non grata na Casa Branca. O indicado à embaixada do Brasil em Washington posava ao lado do guru internacional, indicando que a Amazônia é usada por “globalistas” (sic) para atacar o Brasil e o presidente da República.
Com isso tudo, não seria mesmo de esperar um gesto de conciliação; uma mão estendida ao entendimento mundial. De modo que não é de admirar que Bolsonaro tenha subido à tribuna da Assembleia-Geral disposto a dobrar a aposta.
Antes de tudo, seu discurso caminhou pela via da tergiversação e por suas fantasias particulares e de grupo. Martirizando-se como vítima de uma conspiração “de esquerda” que a polícia de seu governo não foi capaz de comprovar, agradeceu por sua vida assumindo o caráter de herói. Depois, afirmou estar disposto a restituir a verdade, a sua verdade. Buscou assim seus espantalhos de costume, favoritos: “o Brasil ressurge depois de estar à beira do socialismo”, disse. Apontou um País em que havia ataques aos valores da família; ao mesmo tempo em que apelou ao perigo comunista, nominando a Venezuela e a Cuba. Voltamos à Guerra Fria, uma esquálida, guerra fria, admita-se.
Em contraposição ao perigo socialista que se delineava, buscou o conforto - desde sempre controverso - do “sucesso” que alardeia de ações econômicas de seu governo, que ainda hoje ostenta índices tenebrosos de desemprego e estagnação econômica; que começa a recolher críticas de inação e falta de projeto. No campo do combate à corrupção, escudou-se na popular figura de Sérgio Moro,  ostentando-o como um bibelô, outdoor. Sem revelar que o tem esvaziado, num conflito já quase explícito. Jactou-se do que ainda não fez de modo tão sincero que talvez acredite mesmo que já o tenha feito.
Em relação à Amazônia, de fato, não houve acordo. Não explicou a contrariedade com os dados do Inpe, sua rejeição à comunidade científica e muito menos a chuva de fuligem que cobriu a cidade de São Paulo, há algumas semanas. Pelo contrário, afirmou um “compromisso solene com a Amazônia”, indicando que “somos um dos países que mais protegem o meio ambiente” sem perceber que, por questão lógica, torna-se obrigado a reconhecer o esforço de governos anteriores, posto que o seu tem apenas pouco menos de 9 meses.
Minimizando os problemas, admitiu, sim, a existência de queimadas criminosas, mas causou constrangimento ao afirmar “também praticadas por índios”, preferindo mencioná-los ao invés de reconhecer ação de grileiros e maus agricultores. No mais, tudo seria obra de “ataques sensacionalistas despertados pela mídia internacional” e - sem citar a França - de “um ou outro país” que “de forma desrespeitosa” atenta contra a soberania do País.
Nas entrelinhas, foi um discurso de confrontação à França e à Europa, como também de alinhamento e bajulação a Donald Trump. O qual, aliás, falando logo após o brasileiro, martelou nas mesmas teclas de Bolsonaro: Venezuela, Socialismo e Cuba (eis aqui a conexão com Bannon). Aos olhos do mundo, Bolsonaro emerge como pastiche de Trump.
Voltando à questão indígena, Bolsonaro indicou interesses claros: “O Brasil não aumentará sua área indígena”, lançando os olhos sobre as riquezas das reservas Yanomami e Serra do Sol. Atirou no espantalho das ONGs e revelou aí sua estratégia: dividir o inimigo, desqualificando sua liderança: Raoni “é massa de manobra (...) acabou o monopólio do senhor Raoni (...) a visão de um líder indígena não representa” todos os índios. Comprovou isto lendo carta de “uma comunidade indígena” que hipotecava a ele, Bolsonaro, total apoio.
Ao final, fez lembrar Carlos Alberto Parreira, que após os 7 x1, sacou do bolso a carta de uma tal de “Dona Lúcia”, acrítica e solidária ao técnico Felipão. Por quanto tempo ainda esse sentimento de 7 x 1 acompanhará o Brasil?