domingo, 16 de novembro de 2025

Martim Vasques da Cunha - Obra final de Vargas Llosa explica apoio à direita radical, desilusão política e morte serena, FSP

 Martim Vasques da Cunha

Doutor em ética e filosofia política (USP), é autor de “Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More”, “A Poeira da Glória”, “A Tirania dos Especialistas” e “A Disciplina do Deserto” (no prelo)

[RESUMO] Autor analisa como os cinco romances e as duas coletâneas de ensaios finais do escritor peruano Mario Vargas Llosa refletem seus últimos anos: o diálogo constante com Cervantes, o apoio à direita autoritária, como Jair Bolsonaro e Keiko Fujimori, as turbulências no casamento e o desencanto com as ideologias. O livro derradeiro, como em todo grande artista, sela a vitória definitiva da ficção sobre a política.

A obra tardia do escritor peruano Mario Vargas Llosa, falecido em abril deste ano aos 89 anos, mostra como um verdadeiro artista se despe de todas as ilusões do passado —do comunismo ao liberalismo, passando pela idolatria das "belles lettres"— e aceita finalmente que viveu o tempo todo sob o monstro do "horror metafísico".

Obviamente, a crítica jamais conseguiu captar essa reviravolta final. Empapuçada com a entrega do Nobel de Literatura a um latino-americano —que, na prática, teve a mesma existência subdesenvolvida de todos nós que nascemos abaixo do signo do Equador, mas suplantou os obstáculos por meio da vocação de romancista e da disciplina rigorosa de trabalho—, ela não entendeu que, quando um grande homem se aproxima da morte, resta apenas o confronto com "as primeiras e últimas coisas".

Um homem idoso com cabelo grisalho e pele clara está em um ambiente com iluminação suave. Ele está com os olhos fechados e uma expressão serena, como se estivesse em um momento de reflexão ou descanso. O fundo é desfocado, com tons escuros e azuis.
O escritor Mario Vargas Llosa, Nobel de Literatura, durante evento de lançamento do livro "O Sonho de Celta", em novembro de 2010 - Pierre-Philippe Marcou/AFP

Segundo Edward Said, o "estilo tardio" de um artista é caracterizado pela marca da mortalidade em cada uma das suas linhas, preocupando-se com o problema do mal e do sofrimento humano, não como uma forma de imersão neles, mas como um meio para superá-los, especialmente se for na contramão da tendência estética em voga.

Há também, neste estilo, aquela sensação de desterro que, na verdade, mostra que a obra em si faz parte da longa linhagem em que os mortos governam os vivos.

No caso de Vargas Llosa, os seus mortos de estimação são os seguintes (em ordem de importância): Miguel de CervantesJoseph Conrad, a Cuba de Fidel Castro, o jornalismo, a democracia —e, no fechar da cortina, o próprio liberalismo do qual ele foi um dos mais ardorosos defensores.

Mas este funeral ocorre por um bom motivo: no crepúsculo da vida, com todas as honrarias que recebeu e mereceu, Vargas Llosa percebeu que esses defuntos eram apenas devaneios; a verdade era aceitar o silêncio dedicado à família e à esposa fiel (e abnegada), Patrícia.

E a razão para essa consciência aguda de si mesmo é que, apesar da sua longa trajetória como romancista, ensaísta e jornalista político, Vargas Llosa nunca abandonou a sua raiz principal de inspiração.

No seu caso, é o fato de que, em um universo literário dominado pela tara da "autoficção" e das narrativas identitárias, ele sempre foi um escritor de tradição cervantina - isto é, alguém que presta contas a ninguém menos que Miguel de Cervantes, o autor do clássico "Dom Quixote" (1605-1615).

Isso significa que todos os seus escritos giram ao redor de um único tema: o conflito entre os desejos da ilusão e as imposições da realidade.

Foi assim no passado, nas obras-primas de juventude, "A Cidade e os Cachorros" (1963), "A Casa Verde" (1966), "Os Filhotes" (1967) e o inigualável "Conversa no Catedral" (1969).

Seria da mesma forma na maturidade, com o soberbo "A Festa do Bode" (2000); e continuaria nos últimos livros da sua carreira, publicados após a consagração definitiva dada pela Academia Sueca em 2010: "O Sonho do Celta" (2010), "O Herói Discreto" (2013), "Cinco Esquinas" (2016), "Tempos Ásperos" (2019) e "Dedico a Você Meu Silêncio" (2024), com o qual o escritor encerrou publicamente a carreira de romancista.

Entre esses cinco tomos de ficção, há dois volumes ensaísticos que o colocaram ainda mais na ribalta: o polêmico " A Civilização do Espetáculo" (2012) e o melancólico "O Chamado da Tribo" (2018), em que o peruano mostra como uma tradição de pensadores liberais (formada por Raymond Aron, Karl Popper e Isaiah Berlin, entre outros) seria a única oposição diante do ressurgimento do populismo representado por Donald Trump e Jair Bolsonaro.

Ocorre que, depois de 2019, algo mudou na perspectiva política de Vargas Llosa. Ele argumentou que, em eleições no Brasil e no Peru, era sempre preferível eleger os candidatos de direita, mesmo que parecessem desprezíveis.

Daí o escândalo em torno de suas declarações, ora apoiando Jair Bolsonaro (contra Lula), ora Keiko Fujimori (contra Pedro Castillo) —ironicamente a filha de seu algoz, o tirano Alberto Fujimori, responsável pelo fracasso do escritor como candidato presidencial na eleição peruana de 1990, narrada na autobiografia "Peixe na Água" (1993).

O que parecia ser o "mal menor" na realpolitik na verdade era a intuição de que o real vence os delírios da imaginação humana. Contudo, Vargas Llosa sempre foi um partidário exaltado deste último grupo em sua carreira, até chegar ao momento derradeiro em que enfrentou a "indesejada das gentes".

Para explicar melhor esse labirinto de círculos (que crescem dentro de outros círculos), é necessário seguir cronologicamente a evolução dos romances desta última fase —e perceber como eles também dialogam com os ensaios do mesmo período.

"O Sonho do Celta" é um relato histórico, feito aos moldes de "A Guerra do Fim do Mundo", épico de 1981 em que o peruano reconta a saga brasileira de Canudos. Neste romance de 2010, o protagonista é Roger Casement, irlandês que denunciou os abusos da colonização belga no Congo no final do século 19, depois viajou para a Amazônia e lá verificou as condições sub-humanas da extração de borracha na fronteira peruana e, como se não fosse suficiente a fila de desgraças em sua vida, acabou acusado de traição pelo Império Britânico por colaborar com a Revolta da Páscoa em Dublin, em 1916.

Lançando mão de recursos narrativos sofisticados —inspirados pela leitura atenta da obra de Joseph Conrad, aliás ele mesmo um personagem importante no livro—, Vargas Llosa monta um quebra-cabeça em que Casement é apresentado como se fosse o mártir de uma ordem política agonizante, justamente a ordem política do liberalismo que o escritor defendia com tanto ardor nos anos 1990 e 2000.

A tragédia do rebelde irlandês é que a sua morte heroica resultou, no fim, em fracasso. O mundo ficou indiferente aos seus atos de paixão (pessoais e políticos).

Três anos depois, já consagrado pelo Nobel, houve a publicação de outro romance, "O Herói Discreto". Ao resgatar personagens de livros anteriores —o protagonista de "Os Cadernos de Dom Rigoberto" (1997) e o Lituma de "A Casa Verde", "Pantaleão e as Visitadoras(1973) e "Lituma nos Andes" (1993)— e criar outros dois extremamente instigantes (o comerciante Felicito Yanaqué e o empresário Ismael Carrera, ambos envolvidos com chantagens e traições), Vargas Llosa, na época perto dos 80 anos, reflete indiretamente sobre a sua própria velhice.

Na luta para manter um pouco de liberdade individual, em meio às turbulências do Peru e da América Latina por extensão, nem o erotismo com a mulher amada, nem a cultura da civilização europeia podem mitigar a decadência do próprio corpo.

Por coincidência, o peruano já tinha publicado "A Civilização do Espetáculo", ensaio no qual mimetizou os tiques de seu dom Rigoberto e professou que o repertório artístico judaico-cristão havia ido ladeira abaixo.

Logo depois, em 2015, as colunas de fofoca começaram a noticiar que ele havia abandonado sua esposa, Patrícia, então com 70 anos, para engatar um novo romance com a socialite Isabel Preysler (ex-mulher do cantor Julio Iglesias), seis anos mais nova. Nas próprias palavras do escritor, "aproveito a última oportunidade de viver o fogo de uma grande paixão".

Esse fogo impregna "Cinco Esquinas", romance seguinte e aparentemente ligeiro, mas que esconde um tema extremamente sombrio entre as páginas da sua trama folhetinesca.

Partindo de um artifício lúbrico —o relacionamento entre duas mulheres da alta sociedade peruana, que enganam seus maridos com toda a desfaçatez possível—, há um desdobramento, por meio do enredo em torno do folhetim sensacionalista Revelações (comandado pelo grotesco Rolando Garro), sobre como o jornalismo é uma profissão que vive em permanente agonia.

Colunista por décadas de um dos maiores jornais do mundo, o espanhol El País, o escritor chegou à conclusão de que grande parte da imprensa se dedica hoje a veicular notícias sem interesse público ou mesmo falsas sobre a vida dos famosos.

Em 2019, Vargas Llosa voltou ao gênero do romance político que encantou seus leitores, quando era o demiurgo impiedoso de "Conversa no Catedral" e "A Festa do Bode", para criar uma espécie de continuação estética e temática desses livros em "Tempos Ásperos".

A princípio, o livro parece descrever uma conspiração política a respeito do golpe militar ocorrido na Guatemala, em 1954, sob o comando de Carlos Castillo Armas para derrubar o governo progressista de Jacobo Árbenz. Mas a construção intricada do romance, com suas idas e vindas —uma clara influência do "Nostromo" (1904) de Joseph Conrad—, nos leva a um tema muito mais grave: a traição da democracia feita pelas nossas elites intelectuais.

Não à toa que "Tempos Ásperos" inicia-se com uma reunião secreta entre os executivos da United Fruit, a empresa americana que colonizou os negócios na América Latina por boa parte do século 20, e o publicitário Edward Bernays, sobrinho de Sigmund Freud e um gênio da manipulação psíquica.

Bernays convenceu os empresários de que era fundamental manobrar a imprensa progressista dos EUA para que a cúpula de Washington acreditasse que a Guatemala, então um país pobre a desejar apenas um pouco de progresso e dignidade, fosse classificada como "comunista", numa espécie de prévia do que aconteceria anos depois com Cuba no final dos anos 1950.

A obsessão de Vargas Llosa com Cuba também não é aleatória —é geracional. Afinal, ele foi um defensor de Fidel Castro na juventude, para depois se tornar um dos seus maiores opositores ao se converter ao liberalismo político.

"Foi uma grande estupidez dos EUA darem esse golpe militar contra Árbenz usando como testa de ferro o coronel Castillo Armas à frente da conspiração", comenta o escritor no final do livro. "A vitória que obtiveram foi passageira, inútil e contraproducente. Ela intensificou o antiamericanismo em toda a América Latina, fortalecendo os partidos marxistas, trotiskistas e fidelistas. E serviu para radicalizar e empurrar [...] Fidel Castro em direção ao comunismo".

Mergulhando ainda mais no poço do passado, a trama também apresenta um diálogo soberbo entre dois personagens (contar quem são implica estragar a leitura) que sofreram as consequências trágicas dessa conspiração política.

Um deles diz: "Sabe a que conclusão cheguei depois de tudo o que me aconteceu [...], depois de todas as coisas que aconteceram neste país? A uma ideia muito pobre do ser humano. É como se houvesse um monstro no fundo de todos nós. Um monstro que só espera o momento propício para sair à luz do dia e fazer estragos".

Curiosamente, esta visão trágica da política é o oposto do que Vargas Llosa apresenta em "O Chamado da Tribo", coletânea de ensaios lançada no período em que redigia "Tempos Ásperos", na qual defende o liberalismo como a única forma de resistência à onda cada vez mais crescente do populismo autoritário.

No entanto, se antes ele tinha um tom de desafio neste tipo de apologia, depois passou a uma melodia surpreendentemente agridoce. Eis o motivo de ter dito que Bolsonaro e Keiko Fujimori eram melhores do que os candidatos de esquerda disponíveis nas respectivas eleições presidenciais dos seus países. Vargas Llosa sabia que o monstro já tinha saído à luz do dia —e não havia nada que o impedisse de roer tudo o que existia pela frente.

Portanto, no último livro publicado em vida, a elegia "Dedico a Você Meu Silêncio", ele preparou outra surpresa para o lado mais cosmopolita do seu público: aprofundou-se de vez na música criolla do Peru (que amava tanto na sua vida pessoal) e explicitou uma defesa apaixonada da huachafería, a breguice típica daquele país, mas que é a distinção única (e bem-humorada) de quem vive naquela região dos Andes.

A história simples do pesquisador amador Toño Azpilcueta, obcecado pelas canções populares do seu país e também pela trajetória breve e misteriosa do violonista Lalo Molfino, é o mote que faltava ao Nobel de Literatura para que ele enfim prestasse os devidos tributos a Miguel de Cervantes —e que abrisse os olhos para o horror metafísico.

A trajetória simétrica de Molfino e Azpilcueta é reciprocamente paralela ao processo de conversão ao real pelo qual Dom Quixote passa em suas peripécias com o escudeiro Sancho Pança. O músico enigmático é o espectro que assombra o pesquisador, que não sabe mais o que é realidade e o que é ilusão.

E, como acontece com todo personagem llosiano (e cervantino), esse combate é sempre articulado por uma imagem monstruosa e de péssimo gosto. Neste caso, a dos ratos que comem vorazmente todas as partes do corpo de Toño.

Contudo, é aqui que Vargas Llosa dá a reviravolta final, incompreendida pela crítica literária do nosso tempo, e mostra a generosidade do seu caráter, pessoal e literário.

Ao contrário de Cervantes, que faz Quixote ter noção da sua loucura ao ver o horror metafísico da vida no exato momento da sua morte, o peruano dá uma brecha de esperança a Azpilcueta quando este decide abandonar sua obsessão musical e entende que a única pessoa que sempre o ajudou foi sua esposa Matilde.

Seria exagero supor que, ao retornar para sua casa em 2022, depois das aventuras malogradas com Isabel Preysler, o escritor reconheceu essa mesma dedicação silenciosa na ex-mulher Patrícia, a quem dedicou o livro?

Assim, no estilo tardio de Vargas Llosa, o silêncio da música —e da literatura— foi o escudo para se proteger dos ratos da estética, da política e da ideologia que destroem qualquer chance de esperança genuína. Para impedir a vitória do horror metafísico, o escritor recuperou a própria família como a base para uma vida digna. Ele, enfim, esqueceu a ilusão —e abraçou a soberania do Bem que fundamenta o real.

Depois disso, restava a Mario Vargas Llosa o acerto de contas com o próprio passado. Segundo o seu filho Álvaro, em relato publicado após a morte do pai, o escritor visitou os lugares que marcaram sua literatura (como o famoso bar La Catedral) e, já adoentado, se despediu daquilo tudo que lhe era maravilhoso: leu entre lágrimas "O Barco Bêbado", seu poema favorito de Rimbaud; ouviu as sinfonias de Gustav Mahler; e cantou com Patrícia e a filha Morgana algumas canções criollas que adorava.

Morreu serenamente, sabendo que as alucinações da mocidade foram finalmente abandonadas. Para um fiel discípulo de Miguel de Cervantes, nada mais quixotesco —e sem dúvida digno de um gigante da literatura.

Nenhum comentário: