Pergunta: qual o seu momento preferido em "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça Filho?
Compartilho o meu, raramente citado pelas resenhas: a sequência em que o delegado corrupto leva o personagem de Wagner Moura para conhecer o alfaiate alemão. Com que propósito?
Circense —o propósito é circense. O alemão, um veterano da Segunda Guerra Mundial, tem cicatrizes horrendas nas pernas e no peito. Mas o delegado e seus jagunços são incapazes de guardar respeito pela intimidade do homem. As deformidades servem de entretenimento para o público, como se o alfaiate fosse uma aberração de feira.
Nesse momento, lembrei de uma passagem de Nelson Rodrigues em que ele, morto de fome, é convidado por um amigo endinheirado para almoçar. Nelson aceita, esperando comer um filé com fritas.
Azar: o amigo pede fígado para ambos, sem sequer perguntar a Nelson se ele gosta do prato. Nelson não gosta, mas come.
Como lembra meu ilustre colega Martim Vasques da Cunha na obra "A Poeira da Glória", este episódio concentra um dos traços mais dramáticos do Brasil: a ausência de "imaginação moral" —aquela capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, de imaginá-lo como um ser humano digno e autônomo, merecedor da nossa consideração.
E quanto mais alto se sobe na escala social, política e econômica, menor se torna essa virtude diante dos mais humildes.
Em democracia, isso é fatal. Em ditadura, é duplamente fatal: o poder bruto, na sua faceta mais boçal, só tem imaginação para a maldade.
"O Agente Secreto" é um tratado sobre essa imaginação. É um bestiário – e uso a palavra no sentido exato: uma história povoada por animais, humanos ou não humanos, que se revelam a nossos olhos com uma lição devastadora. A violência é a alma do Brasil.
As bestas podem ser cachorros selvagens rondando um cadáver abandonado. Podem ser tubarões devorando pernas —ou assustando os sonhos das crianças. Pode ser um espantoso gato com duas cabeças —minha maior gargalhada na sala, para espanto de meus companheiros de sessão.
Entre os humanos, a bestialidade é ainda pior: delegados homicidas; pistoleiros que matam pelo melhor preço; policiais corruptos; funcionários federais ressentidos e vingativos; até uma perna cabeluda punindo o desejo e a transgressão.
Se Mendonça Filho tivesse nascido séculos atrás, imagino-o como construtor de catedrais góticas —pela exuberância formal e narrativa com que fala do mundo.
Para começar, o mundo da ditadura. Existem duas formas de lidar com regimes autoritários: de forma solene e íntima (a opção de Walter Salles em "Ainda Estou Aqui"); ou retratando a exceção à regra democrática como experiência surreal, febril, alucinante e alucinada.
Mendonça Filho escolheu a segunda opção —e escolheu bem. Regimes autoritários, ao contrário do que pensam os seus nostálgicos, não são exemplos de ordem ou segurança. Pelo contrário: são estados de caos e arbitrariedade, onde a lei não tem vez e os predadores andam soltos.
Sabemos disso na primeira sequência do filme, quando conhecemos Marcelo e, pelo seu olhar, contemplamos o cadáver esquecido junto ao posto de gasolina. A pergunta na cabeça de Marcelo é também a nossa: isso é sério ou é brincadeira?
As duas coisas, aprendemos rapidamente, porque tragédia e comédia se misturam todo tempo. É como o Carnaval em Recife: alegria e festa —e, no final, morrem 91.
O espanto de Marcelo é o nosso espanto: ele, fugindo de um passado perigoso e com a cabeça a prêmio, tenta manter a sanidade, fugir do país com o filho, reconstruir seu futuro longe da violência e da morte.
Mas a energia animalesca das bestas é maior do que o cansaço de Marcelo.
O filme de Mendonça Filho é um dos mais poderosos retratos do Brasil de ontem e de hoje. Mas é também uma acusação aos que não respeitam a memória histórica, ocultando a extensão dos crimes passados.
Não é por acaso que as pesquisadoras que reconstroem a vida de Marcelo, escutando as fitas que ficaram daquele tempo, são impedidas de continuar. Como se a única versão tolerada fosse a versão oficial, amputada, controlada, para descanso dos contemporâneos.
É uma ilusão perigosa: sem confrontar o mal, ele se reorganiza e volta para nos assombrar. Somos, no fundo, como o filho de Marcelo —impedido de assistir ao filme do tubarão e permanentemente visitado por ele durante o sono.
Os pesadelos só terminam quando o menino contempla o interditado.

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