[RESUMO] Colunista da Folha rememora como as reações negativas ao primeiro número de um tabloide de estudantes da PUC-Rio, do qual era um dos editores, o levou a escrever um artigo sobre a questão no Jornal do Brasil e, meses depois, publicar sua primeira reportagem em um jornal, que foi lida pelo então presidente, José Sarney, e se tornou um marco de sua carreira.
Na segunda quinzena de junho de 1985, três meses depois da posse de José Sarney na Presidência, encerrando um ciclo de 21 anos de ditadura, começou a circular na PUC-Rio o segundo número do jornal Pilotis. Em formato tabloide, ele trazia na capa um casal de estudantes, vestidos para festa junina, segurando um cartaz com as seguintes palavras: "Democracia nessa porra!". A montagem ainda incluía anjos e diabos sobrevoando o famoso pilotis da universidade.
No interior do jornal, uma reportagem intitulada "Maconha: repressão dá bandeira" criticava o uso de cães pela guarda no esforço de coibir os usuários que fumavam no bosque do campus. "Como proibir qualquer coisa em uma universidade, pois que me perdoem os conservadores, nela não deve haver limites", escreveu o repórter Claudio Henrique.
Uma outra reportagem criticava a ingerência do cardeal Eugênio Sales (1920-2012) na universidade. "No departamento de Teologia da PUC, o diabo foge da cruz da democracia. Dois professores proibidos de lecionar, 50 lecionando, dez alunos expulsos, 133 estudando, e mais uma pitadinha de diretor interino dão a receita do bolo."
O "editoriau", igualmente debochado, informava: "Escândalos sinceros nos interessam". O texto pedia eleições diretas para "papa, cardeal, reitor, coroinha, ascensorista". E encerrava falando da função do jornal: "Partir o pão e parir o cão. We are the children. Ou não, gente?".
O então reitor Laércio Dias de Moura (1919-2012) reagiu com uma carta, falando da sua "decepção por ver que há jovens capazes de sair a público numa linguagem tão baixa, sem o mínimo respeito pela comunidade universitária em que estão inseridos".
O Conselho Universitário, formado por 19 membros, incluindo professores e alunos, aprovou uma moção de repúdio ao jornal. O órgão lastimou "que um grupo de alunos exponha a comunidade universitária ao constrangimento de ver surgir em seu meio um veículo de opinião que publica um número com uma orientação tão marcadamente destrutiva, e expressa, ademais, de forma tão vulgar".
Todos os integrantes da equipe do jornal, cujos nomes apareciam no expediente, receberam uma carta da reitoria com palavras pouco elogiosas ao trabalho que ajudaram a fazer. "Os princípios éticos da sociedade cristã foram contestados por essa publicação", disse a então vice-reitora comunitária Hedy Silva Ramos de Vasconcellos.
Na condição de um dos editores do jornal (o outro era o também estudante de jornalismo Toni Marques), fui convocado a uma reunião na presença do reitor e da vice-reitora. Além do sermão, ouvi claramente o recado que, caso fizesse algo levemente parecido com o segundo número do Pilotis, seria expulso da universidade.
No dia 27 de junho, o Caderno B do Jornal do Brasil tratou do assunto em sua capa. A reportagem, intitulada "Jornal da PUC pede liberação da maconha e decepciona reitor", descrevia as reações à publicação, mas não trazia a opinião de nenhum dos integrantes do Pilotis. O JB informava que o tabloide continuava circulando, "mas a vigilância em certos locais isolados do campus, de onde subiam odores curiosos, está sendo mais severa".
Não ocorreu uma censura formal, mas as pressões foram fortes. O semestre estava perto do fim e não houve uma única manifestação de apoio ao jornal. A reação da cúpula da PUC somada à repercussão negativa ajudaram os membros do Pilotis a decidirem pelo fim da publicação. No meu caso em particular, havia ainda o medo de ser expulso a um semestre do fim da conclusão do curso de jornalismo.
O jornal era um órgão não oficial do Diretório Central dos Estudantes. O DCE havia sido conquistado, no segundo semestre de 1984, por uma turma de estudantes "anarquistas", cuja palavra de ordem era "o DCE é todos e é ninguém". O grupo basicamente da área de humanas era crítico à esquerda universitária e, embora muito arejado culturalmente, tinha pouca experiência em articulação política.
No dia em que a reportagem do Caderno B foi publicada, telefonei para o jornal, perguntando pelo autor do texto anônimo. Veio ao telefone o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos. Reclamei que nenhum integrante da equipe havia sido ouvido pelo repórter. Ele desculpou-se, dizendo que procurou por nós na sede do DCE, mas não encontrou ninguém, e me convidou a escrever um texto para o jornal expondo a nossa posição.
Logo chegaram as férias de julho, fui passar uns dias em São Paulo e, na volta, dentro do ônibus da Cometa, comecei a rabiscar um texto. O título era "Os conservadores habitantes da lua" e foi publicado ao pé da última página do Caderno B na sexta-feira, 26 de julho. O foco do artigo era a falta de solidariedade recebida pelo Pilotis. Colocando no mesmo saco "comunistas, queimadores de fumo e direitistas", conspirando em uma "maliciosa omissão", eu classificava a juventude da PUC como conservadora e especulava que seus filhos iriam gerar "os conservadores habitantes da lua".
Publicado com uma fotinho minha, onde eu era apresentado como "coeditor do Pilotis e poeta", o meu primeiro texto em um jornal da chamada grande imprensa provocou duas reações.
A primeira foi da minha mãe, logo na manhã de sexta-feira, ao ver o jornal. "Por que você excluiu o ‘José’ do seu nome?", quis saber. Colocado entre o Mauricio e o Stycer, o nome do meu avô foi excluído, expliquei, porque jornalistas costumam assinar com apenas dois nomes. Percebi que Sonia ficou sentida, mas nunca mais me questionou a respeito.
A segunda reação foi do Jornal do Brasil. Joaquim Ferreira dos Santos me chamou à Redação. Flavio Pinheiro, que havia assumido o comando do B pouco tempo antes, queria me conhecer. Ele elogiou o texto e me estimulou a escrever mais. Demorei alguns meses a atender o seu convite.
Em novembro, finalmente, procurei-o com uma sugestão de reportagem. Pinheiro, então, havia sido promovido ao cargo de editor-executivo do jornal, abaixo apenas do diretor de Redação, Marcos Sá Corrêa. O novo editor do B era Zuenir Ventura, que gostou da minha ideia e designou um fotógrafo para me acompanhar.
Junto com Carlos Hungria, fui a Queimados, então distrito de Nova Iguaçu, entrevistar Antônio Fraga (1916-1993). Autor de "Desabrigo", escrito inteiramente em gíria, e publicado em 1945, Fraga havia sido comparado por Oswald de Andrade a Guimarães Rosa e Clarice Lispector. A lista de fãs do seu romance incluía Antonio Callado e Claudio Willer, entre outros intelectuais.
Em novembro de 1985, Fraga vivia no ostracismo e na quase miséria em uma pequena casa na rua Japeri, lote 35, quadra 2. Tinha então 69 anos e disse: "Eu ainda não me detive no terreno das realizações. Embora eu esteja um pouco fatigado, devido à idade, ainda estou me realizando. Agora, se a humanidade não toma conhecimento de uma obra, pior para a humanidade".
Publicada na terça-feira, 12 de novembro de 1985, há 40 anos, minha primeira reportagem em jornal saiu na capa do Caderno B com direito a uma chamada na primeira página do JB. Conforme relatou Ancelmo Góis, na coluna Informe JB do dia seguinte, o presidente José Sarney, depois de ler o texto, determinou a Marcos Vilaça, presidente da Fundação Legião Brasileira de Assistência, que ajudasse Fraga.
Quarenta anos depois, ainda me recordo do dia em que voltei ao JB após a publicação da reportagem. Não recebi nenhum elogio ou cumprimento em especial. Apenas uma recomendação, de Joaquim Ferreira dos Santos: "A próxima tem que ser melhor que essa".
Como tantos outros jornalistas da minha geração, passei as últimas quatro décadas buscando fazer sempre uma reportagem melhor que a anterior. Sem muito sucesso, no meu caso. Sei que este texto está carregado de nostalgia, mas não é este o meu sentimento principal. Em meio à maior crise que a minha profissão já passou, escrevo sobre o meu primeiro texto em um jornal ainda pensando no próximo.


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