Costumamos tratar as ideologias políticas como quem freia num cruzamento: esquerda ou direita. Mas, no cérebro e nos grupos, o mapa é outro. Lembra o voo de um avião. A altitude separa a liberdade econômica da igualdade. A longitude contrapõe tradição e diversidade.
O repúdio ao intervencionismo estatal costuma acompanhar o apreço pela tradição em boa parte dos países. Porém, essas associações são arbitrárias. A esquerda econômica é bastião do tradicionalismo em várias ex-repúblicas soviéticas, enquanto o fusionismo, uma forma de intervencionismo conservador, predomina no Kremlin e na Casa Branca.
Nos últimos anos, virou consenso que a esquerda brasileira chegou a um beco sem saída, guiada pela ênfase na pauta identitária em um país conservador. O paralelo são os Estados Unidos, onde a reação enérgica dos republicanos rendeu-lhes vitórias acachapantes.
A tese se apoia em dados mostrando que falta apoio popular à visão dominante na FFLCH. Daí a conclusão: Lula seria o último representante de uma linha política em declínio. Creio que essa tese esteja inteiramente errada. O cenário oposto é muito mais provável. Se isso será bom ou ruim cabe a cada um julgar. Prefiro concentrar-me na modelagem de cenários.
Entre 1985 e 1995, políticas de austeridade fiscal se disseminaram pela América Latina. O resultado, além do ajuste das contas públicas, foi a onda rosa de 2003 a 2013: Lula, Kirchner, Chávez, Lagos, Gutiérrez, Mesa, Morales, Bachelet, Correa, Ortega, Lugo e Mujica. Cinco das seis eleições presidenciais deste século foram vencidas pela esquerda no Brasil, enquanto no subcontinente como um todo as vitórias da direita também seguiram o bolso do eleitor.
É claro que isso pode estar mudando, e a dimensão dos costumes estar ganhando importância excepcional, mas o cenário é improvável, posto que a independência sociocognitiva dos eixos faz com que o voto se oriente sobretudo pelo que mais pesa para o eleitor.
A população pobre do Nordeste é mais conservadora que a classe média catarinense, mas vota na esquerda por considerar o ativismo estatal mais relevante que a opinião do padre ou do pastor. Já nos Estados Unidos, as cidades têm fronteiras étnicas e a imigração é um tema candente, o que torna os temas da identidade muito mais relevantes.
É justamente aí que entra o fator determinante para a política da segunda metade da próxima década: a inteligência artificial. A tecnologia tende a ampliar desigualdades e, com ela, a importância da pauta econômica na América Latina. Até Peter Thiel, protagonista de meu Malvado Preferido, reconhece que a proletarização dos mais jovens fortalece o socialismo.
O discurso contra o domínio algorítmico tende a catalisar nacionalismo e aflição, em campanhas exaltando o ativismo estatal para gerar empregos e taxar o output das IAs. E quem terá mais chances de dominar essa pauta: a direita populista ou a esquerda populista?
Que mensagem vai ecoar mais entre os jovens sem estágio e os idosos com expectativa de vida alongada: a do empreendedorismo ou a renda básica universal em patamares capazes de sustentar até a classe média? Não se iluda com as planilhas que mostram a inviabilidade desse plano. Elas não são nada diante do desespero para encontrar uma tábua de salvação.

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