Debate sobre 'blackface' do primeiro-ministro canadense explicita ausência de diálogo
O Canadá terá eleições daqui a algumas semanas e o primeiro-ministro, Justin Trudeau, encara um enorme problema. Os fatos são conhecidos.
Duas décadas atrás, em festas à fantasia, ele costumava fazer “blackface”. Em uma delas, fantasiou-se de Aladin; em outra, surge com uma cabeleira negra e o rosto pintado, mostrando a língua.
As imagens caíram como uma bomba sobre a política canadense, e o problema está longe de ser resolvido. Trudeau constituiu sua figura pública como a mais genuína expressão do Canadá multicultural.
O homem feminista, progressista e campeão do politicamente correto. Por óbvio, não faz sentido associar Trudeau a políticas discriminatórias. Mas as imagens estão lá.
Trudeau pediu desculpas ao país e disse que não se lembrava exatamente quantas vezes havia pintado o rosto de negro. Não dá pra saber como o eleitorado canadense irá reagir a tudo isso, nas eleições. Mas este não é o ponto. O interessante é perguntar o que este episódio tem a nos ensinar sobre o mundo político e a democracia, nos dias que correm.
A primeira lição me faz recordar do professor Anthony Appiah e seu argumento sobre as revoluções morais, em nossa época. Assim como a escravidão, em algum momento no início do século 19, na Inglaterra, e a prática dos duelos, tempos depois, tornaram-se moralmente intoleráveis, o mesmo ocorre, em um ritmo possivelmente muito mais acelerado, com o deboche de traço racial.
No espaço de apenas uma geração, que vai da juventude à maturidade de Trudeau, move-se a fronteira entre o desculpável e o inaceitável. Trudeau diz que não sabia do traço racista do “blackface”. É possível. Como bem disse João Pereira Coutinho, é razoável dar a ele o benefício da dúvida.
A maioria das pessoas não agirá assim. Coutinho é um intelectual liberal e tolerante. O mundo de hoje anda povoado por pequenos Torquemadas. Para boa parte deles, o julgamento de Trudeau já está feito.
Surge aqui um ponto intrigante: é razoável julgar o passado a partir dos padrões e da régua moral da época atual? Julgar Monteiro Lobato por seu jeito de tratar Tia Nastácia? Ou os Trapalhões, pelas piadas com o Mussum? Seria preciso limpar a cultura de toda esta impureza. Proibir sua veiculação, retirar das bibliotecas, reescrever tudo com as palavras adequadas, e fazer isso a cada novo ciclo moral?
Estas questões ganharam escala na democracia atual. A conexão digital fez com que todos passássemos, subitamente, a viver juntos, e criou um universo algo assustador de vigilância coletiva. Em parte, é disso que trata o politicamente correto: a lógica da regra democrática sobre a expressão individual. Sobre os usos da linguagem, o humor, o jeito de vestir. Qualquer coisa que se mova, possa ferir a sensibilidade alheia e ganhe dimensão pública.
O universo digital criou um problema a mais: um ecossistema em que toda informação é guardada e nos assombra, dia após dia. Uma grande máquina de não esquecimento. É assim que retorna, eleição após eleição, a fala infeliz de Lula sobre Pelotas (RS), quase duas décadas atrás, e os exemplos poderiam ser muitos. Com Trudeau não é diferente.
Antes que alguém julgue se isso é bom ou ruim, digo que é apenas o novo normal da democracia digital. Toneladas de informação fora de contexto, acertos ou erros, informação irrelevante sobre qualquer assunto.
Nietzsche definia o esquecimento como uma condição para a renovação da vida. A faculdade que nos permite limpar o terreno e começar de novo. Nossa democracia vai na direção oposta. Funciona como um imenso terreno baldio em que nada se joga fora, e cada passo à frente nos atira de volta ao passado.
Confesso não ter uma solução para o caso Trudeau, mas me permito lembrar de uma história. Em um dia de julho de 2009, Henry Louis Gates, professor negro de Harvard, chegou em casa e percebeu que havia esquecido as chaves. Quando arrombava a própria porta para entrar, foi preso pelo policial branco James Crowley. O caso tinha evidentes conotações raciais e ganhou repercussão nacional.
Antes que tudo virasse um choque retórico e jurídico, o recém empossado presidente Obama convidou a ambos, Gates e Crowley, para uma amigável cerveja nos jardins da Casa Branca, onde poderiam discutir o assunto e entender o que havia acontecido. Para que tudo aquilo não virasse mais um episódio banal da guerra racial americana, mas uma chance de aprender alguma coisa.
E foi assim que aconteceu. O gesto de Obama é um ponto suspenso no vazio de um mundo que, mesmo fazendo com que todos vivam súbita e intensamente juntos, parece ter perdido o gosto de dialogar e aprender.
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