Quando Carlos Drummond de Andrade completou 50 anos, Sérgio Buarque de Holanda escreveu sobre o poeta mineiro um ensaio que ia além do óbvio. O historiador não via apenas humor e ironia —via o drama da vida moderna, onde gestos e palavras perderam "o calor primitivo".
"O artifício dos intercâmbios, das acomodações de superfície, do espetáculo diário e convencional, envolvendo e procurando a todo instante sobrepujar o que na vida há de mais vivo, mais íntimo: esse é o tema constante de Carlos Drummond de Andrade", escreveu em artigo publicado na Folha da Manhã, nos anos 1952.
No início dos anos 1960, o jornal se fundiria com a Folha da Tarde e a Folha da Noite para dar origem à Folha.
O autor de "Raízes do Brasil" identificou em Drummond um pessimismo radical, sem romantismo. A desumanização que o poeta registrava.
Buarque de Holanda notou ainda a obsessão drummondiana por palavras que evocavam o mineral no orgânico: unhas, dentes, pestanas. Elementos que, na poesia, se associavam aos "artigos mecânicos que contribuem para minar a carne e o ritmo natural da vida".
Leia a seguir o texto completo, parte da seção 105 Colunas de Grande Repercussão, que relembra crônicas que fizeram história na Folha. A iniciativa integra as comemorações dos 105 anos do jornal, em fevereiro de 2026.
O mineiro Drummond (13/11/1952)
A mesma paisagem que emudeceu diante de Cláudio Manuel da Costa, sempre enleado com as ninfas do Mondego, e que Alphonsus povou de santos, de sinos, de hinos mais medievais do que barrocos ou rococós, reservou-se intacta do outro grande poeta de Minas Gerais. Não é, entretanto, a presença física ou simplesmente decorativa da paisagem mineira o que importa em Carlos Drummond de Andrade, mas alguma coisa de mais fundamental que, esquivando-se, embora, a qualquer tentativa de descrição e definição, pôde impor-se já aos seus primeiros leitores.
A ação daquela terra itabirana onde o poeta nasceu há meio século – "Noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação" – não seria tão absorvente se não significasse, por sua vez, a presença de um passado continuamente vivo e atenuante. A fidelidade implacável, ainda que nem sempre visível, à imagem doméstica, emergindo "da névoa, das memórias, dos baús atulhados, da monarquia, da escravidão, da tirania familiar", irá compor, em verdade, a trama essencial de toda a sua obra.
Até aqui, porém, nada há de verdadeiramente dramático. O drama principia onde, sobre esse fundo ancestral e íntimo, se projetam os imperativos de uma existência aparentemente conversável, mas onde as palavras, os gestos, as práticas perderam o calor primitivo e tendem, cada vez mais, a mecanizar-se, burocratizar-se, num automatismo quase inumano.
Para uma tal existência, aquela obstinada fidelidade aos velhos ritos terá o efeito de uma tara congênita, de um pecado original irremissível. O contraste resolve-se, sem dúvida, em poesia, mas poesia onde todos os antagonismos permanecerão indenes. Nada tão ilusório como esperar-se uma fuga no passado ideal, no sonho, na fantasia, na "poesia", de quem certa vez chegou a confessar: "O tempo é minha matéria, o tempo presente, os homens presentes..."
O traço próprio desta obra está precisamente em que ela não se insere em nenhuma das categorias estáveis, a do "poético", por exemplo, ou a do prosaico; a do sério ou a do frívolo, que servem, quando muito, para os classificadores e os críticos, mas guarda em si, ao contrário, os mais díspares elementos. Todos estes elementos – a livre emoção, tanto quanto o falsete e a reserva irônica, a "piada" assim como o mais puro lirismo – representam, na verdade, partes necessárias, inseparáveis de um mesmo conjunto e que, reunindo-se, não se temperam ou se confundem, antes se destacam e se valorizam por obra do seu mesmo contraste.
O artifício dos intercâmbios, das acomodações de superfície, do espetáculo diário e convencional, envolvendo e procurando a todo instante sobrepujar o que na vida há de mais vivo, mais íntimo, mais isento de compromissos externos, e que parece vir do fundo dos tempos: esse é o tema constante de Carlos Drummond de Andrade. Falou-se demasiado no humor do poeta e não sei, de fato, quem, melhor do que ele, saiba exprimir, interpretada com alguma liberalidade, a definição célebre: "o mecânico implantado, colado sobre o vivo", "du mécanique plaqué sur le vivant".
Em certas aparências mais grosseiras que a fala do anjo torto no pórtico de um dos seus livros não deixa de sugerir, ele ainda faria evocar aquelas outras palavras do filósofo sobre a obstinação dos que, sujeitos a um só e invariável ritmo, ficam desamparados diante do menor obstáculo.
"Une pierre était peut-être sur le chemin. Il aurait fallu changer d’allure ou tourner l’obstacle…
[Havia uma pedra no caminho. Seria preciso alterar o passo, ou contornar o obstáculo...]"
Contudo, essas formas de inibição e timidez, se representam, talvez, um ingrediente necessário na obra, em toda a personalidade de Drummond, estão longe de dar acesso aos seus aspectos mais significativos. Seria preciso acrescentar-lhes, notou o Mário de Andrade, uma sensibilidade e uma inteligência apuradíssimas, virtudes que o absolveriam de todos os pecados da timidez. Eu diria sobretudo que ele trouxe consigo de nascença ou – quem sabe? – de seu mundo itabirano, o veneno e também o antídoto da timidez: essa autocrítica implacável, espécie de inteligência da sensibilidade, que impede a menor manobra em falso. Mesmo a timidez, no sentido corrente da palavra, não sei se explicaria muita coisa desta poesia. Em realidade toda timidez descansa naturalmente sobre o sentimento da própria precariedade, e sabemos que nada há de um tal sentimento os romantismos de todos os tempos.
Mas Drummond é em muitos pontos, neste particularmente, o contrário de um romântico. Ele não quer comprazar-se no malogro, nem se lamenta sobre as dores do mundo, nem –salvo por exceção– chega a sonhar com algum paraíso futuro. Seu pessimismo radical não se detém ao menos nas experiências pessoais ou nas formas contingentes. Talvez remediáveis. A desumanização dos homens prisioneiros, cada vez mais, dos gestos públicos e mecânicos em que se submerge a personalidade será apenas em suas formas mais acerbas um mal dos nossos tempos; a verdade, porém, é que só se destina a melhor patentear o segredo que todos sabem: "que esta vida não presta".
Não são somente aquelas dentaduras mecânicas, "engenhos modernos, práticos, higiênicos", que servem para mastigar a "carne da vida", como não é só o cimento armado das casas de apartamento, fechando famílias em células estanques que justifica a notação do poeta:
"O elevador sem ternura
expele, absorve
num ranger monótono
substância humana.
Entretanto de há muito
se acabaram os homens.
Ficaram apenas
tristes moradores."
Pois é bem pouco provável que os mesmos homens se acomodariam tão docilmente à mudança, se já não andassem, por natureza, divididos de si, se não fossem portadores, no espírito e na carne, das marcas do mal.
Não é, talvez, por acaso, se entre as palavras-chave desta poesia ocupam tão largo espaço as que podem evocar tudo quanto, no orgânico, tem aparência menos orgânica, mais "mineral": as unhas, os dentes, as pestanas, os bigodes. As unhas principalmente, equiparáveis e associáveis, não raro, pelo efeito ou posição no contexto, a esses mesmos artigos mecânicos que contribuem para minar a carne e o ritmo natural da vida: "pensando com unha, plasma, fúria, gilete..." ("O Mito"); "sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas" ("Morte no Avião"); "os olhos no relógio, fascinados, ou as unhas brotando em dedos frios" ("Visão 1944"); "cortaremos o piano em mil fragmentos de unha?" ("Onde Há Poucas Palavras")...

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