O relatório vazado pelo jornal britânico Telegraph sobre a conduta editorial da BBC expõe erros da imprensa impossíveis de justificar. O relatório trata, entre outros pontos, de um vídeo de Donald Trump exibido a uma semana das eleições presidenciais de 2024. Nele, o republicano aparentemente incentiva seus apoiadores a invadirem o Capitólio em janeiro de 2021.
Ainda que sobrem indícios da conexão entre Trump e a violência em Washington, a prova cabal não reside no filmete. Houve, de fato, uma edição alterada do discurso do então candidato perdedor, mais tarde levada ao ar no programa Panorama e talvez em outro telejornal da BBC. Houve quebra do rigor jornalístico numa respeitável instituição pública, criada por carta régia e em boa parte financiada pelo contribuinte.
Na sequência do vazamento, bombardeio sobre a BBC, sobretudo vindo da direita e ultradireita. Faltou microfone para quem quisesse pedir cabeças, e duas importantes já rolaram: Tim Davie, diretor geral da corporação, e Deborah Turness, diretora da BBC News. Ambos chamaram os erros para si, mas defenderam o trabalho dos jornalistas.
O coro dos indignados, incluindo Trump, que ameaça processar a emissora, acaba por expor uma notável rede de interesses. Michael Prescott, consultor externo e autor do relatório, foi contratado pelo conselho da BBC por indicação de um dos seus membros, Robbie Gibb. Este, por sua vez, entrou para o conselho por indicação do ex-primeiro-ministro Boris Johnson, uma espécie de crítico oficial da BBC. Johnson é sempre o primeiro a bradar que "é preciso mudar tudo".
O relatório Prescott aponta desvios na cobertura sobre temas sensíveis, como a guerra em Gaza ou mesmo reportagens sobre pessoas trans. Davie garante que alguns ajustes foram feitos a partir do relatório, mas não explica por que não se desculpou logo pelo vídeo manipulado. Seria o inadiável a fazer.
Curiosamente, a BBC virou um fenômeno de mídia nos EUA. Na campanha de 2024, iniciou uma forte subida de audiência. Seu site bateu recorde de visitantes americanos em setembro último: 77 milhões. E uma pesquisa do instituto YouGov mostra que ela está em segundo lugar entre os canais de maior confiança dos americanos, perdendo para o Weather Channel.
Então, por que Johnson e Trump esbravejam? Cada qual com seu motivo. O ex-primeiro-ministro prega um novo modelo de negócios para a rede e certamente quer ser parte disso. Já o presidente americano precisa de um canal de notícias de alta credibilidade que faça frente à CNN, cuja linha editorial, mais crítica ao seu governo, ele define como "lixo". Se a BBC se desculpar e oferecer um horário nobre ao ofendido, a mágoa poderá ser diluída no prazer de se sentir britânico.
Em julho de 2024, quando Trump sofreu o atentado em Butler, na Pensilvânia, o correspondente da BBC deu um show na cobertura. Vestido de terno e gravata num dia abafado, o veterano Gary O’Donoghue se jogou no chão ao ouvir os tiros. Entrou ao vivo agachado, como se estivesse numa trincheira. E foi o primeiro a entrevistar o rapaz que viu o atirador rastejando para escalar o teto de um edifício.
Trump concedeu a O’Donoghue a única entrevista no aniversário de um ano do atentado. No meio da cortesia, confessou que gosta mesmo é de pensar que aquilo não aconteceu.

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