A única inovação política do século 21 foi a catalisação das pautas identitárias na política brasileira. Muitos queriam que Lula escolhesse uma mulher ou um negro para a cadeira vaga do STF. E, no entanto, neste dia 20 de dezembro, feriado de Zumbi dos Palmares, Lula nomeou Jorge Messias como novo membro do STF.
Todos sabemos que a política impera na escolha. Presidentes escolhem nomes de sua confiança. O que espanta é que Lula não reconheça como membros de sua confiança pessoas de matriz ideológica identitária, especialmente mulheres e negros, apesar de toda devoção dos identitários ao petismo.
Para entender o desprezo de Lula, é preciso compreender as matrizes da ascensão do identitarismo. Até poucos anos atrás, o identitarismo não era a força política dominante no país.
Foi nas jornadas de junho de 2013 que tudo começou a mudar. Naquele ano pipocaram uma série de manifestações que não estavam no script nem do PT nem do PSDB, os partidos que vinham polarizando a redemocratização do país. Longe de lideranças tradicionais, a sociedade civil se organizou através das redes digitais para, sem pedir licença ao governo nem oposição, colocar suas pautas na ordem do dia. Tarifa zero no transporte, saúde e educação com "padrões Fifa de qualidade". Sem esquecer da crítica à corrupção disseminada em todas as siglas partidárias. Em poucos anos o establishment político, à direita e à esquerda, cuidou de anular essas demandas, "com Supremo, com tudo".
Mas, junto dessas demandas estruturais facilmente anuladas, outras pautas começaram a tomar o centro do debate. Elas de fato já existiam desde o fim dos anos 1960, mas tornaram-se centrais na definição de quem era de esquerda ou direita depois de 2013.
Direitos das mulheres, dos homossexuais, dos negros e de diversas minorias e maiorias excluídas se tornaram o chão do debate na internet, nossa nova arena pública. A ponto de o significado de ser de esquerda no Brasil ter mudado radicalmente. Até os anos 1990, a pauta da reforma agrária era central para definir quem era de esquerda ou direita. A opinião sobre um possível calote da dívida externa também demarcava trincheiras. Nos dias atuais você será mais facilmente identificado às esquerdas se adotar o discurso das minorias, fizer sua mea culpa pública identitária ou cancelar qualquer um que cheire a direita ou liberal.
Questões econômicas, quando aparecem no debate, estão em segundo plano. Na nova arena pública das redes sociais, o cancelamento identitário se tornou a forma primária e agressiva de fazer política.
Seja qual for seu veredito sobre as pautas identitárias, elas não encontraram expressão no meio político tradicional. Este fato grita toda vez que Lula precisa escolher um ministro do STF. O procurador geral (Paulo Gonet) e os dois ministros do STF (Flávio Dino e Cristiano Zanin) anteriormente indicados por Lula se disseram católicos e contra o aborto em suas sabatinas no Senado. Quando Lula indicará uma mulher? Quando indicará novamente um negro retinto? E um ministro gay? Uma ministra que se diga adepta do candomblé, será possível?
Se os identitários de esquerda abdicaram da luta partidária, a direita deita e rola. O PMB (Partido da Mulher Brasileira) existe desde 2015, nas mãos da direita. Também nas direitas, as pautas deixaram de ser econômicas e estruturais para serem culturais. Definimos um bolsonarista mais por ser "a favor da família tradicional", do porte de armas e contra o aborto, do que por sua opinião sobre a taxa de juros.
Jair Bolsonaro foi a expressão identitária da direita autoritária. Inexpressivo deputado por longos trinta anos, foi alçado a salvador da pátria em pouco tempo, ao tomar o elevador das pautas identitárias pela via da extrema direita mais tosca.
Quando teremos uma nova Frente Negra Brasileira, como houve no período varguista? Criaremos vários partidos LGBTs? E um partido que represente o feminismo mais radical e outros mais brandos? Seria interessante ver estas forças políticas se confrontando com a institucionalidade. Qual o projeto dos identitários para a pauta econômica do país? Aí poderíamos ter diversos partidos da causa gay, abraçando a pauta de diversas formas. Outros tantos que representem a mulher, pessoas com deficiência, os indígenas, etc. Quanto maior a institucionalização, mais representatividade democrática. Até para fiscalizar um partido da esquerda tradicional como o PT.
O PT é um partido de velhos. Surgido em outra época, diante de outras questões. Mesmo o PSOL, que abraça enfaticamente as pautas identitárias, não nasceu em função delas.
Aos poucos PT e PSOL foram incorporando as bandeiras identitárias. Mas na hora H, fica claro que Lula não é um deles. Seus vacilos diante das minorias só são tolerados por que os próprios identitários não forjaram partidos institucionais como pontas de lanças de seus movimentos. E ficam reféns da complacência de um senhor de 80 anos mais preocupado com a suposta governabilidade do que com as minorias.
Quando a política institucional entrará de fato no século 21? Até quando Zumbi será desrespeitado?

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