Deve existir algo entre o assombro de uma chacina e a antecipação do Carnaval. Um respiro que nos coloque para além das experiências de horror ou de epifania, que sempre andam juntas.
Quando estávamos às vésperas de quase reeleger o pior governo da nossa história, responsável, por ação e por omissão, pela morte de milhares de brasileiros, fui a uma festa. O primeiro turno tinha embaralhado as cartas e acreditar numa saída dependia apenas da aposta pessoal de cada um. Não havia qualquer garantia de que não iríamos incorrer no mesmo descalabro.
Era uma festa dançante e uma alegria genuína e desesperada pairava no ar. A alegria de quem sabe que pode cair a qualquer momento. Não à toa estamos entre os povos mais festeiros do mundo. Há algo de epifânico em saber que cada festejo pode ser o último. Nada se torna mais valioso e digno de gozo do que aquilo que antecede o risco, que, para nós, tem sido permanente.
A cerveja fica mais gostosa e o samba mais sambável. Algo que o filme "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça, explora com maestria. O prazer a mais vem do sentido de urgência, como sabem os recém-apaixonados, para quem cada separação é sentida como perda irreparável. Cada segundo longe do amor é um misto de antecipação e angústia.
Mas existe outro ponto, não afeito aos extremos, equidistante entre o desejo ardente e a fúria destrutiva. Há momentos nos quais conseguimos fruir, sem grandes expectativas ou lutos. No filme "Depois da Vida" (1998), o diretor Hirokazu Kore-eda, mais conhecido no Brasil por "Pais e Filhos" e "Assunto de Família", nos coloca diante de uma questão difícil: se você tivesse que escolher uma cena para viver para sempre, qual seria?
Enquanto os personagens escolhem a memória que os acompanhará pela eternidade —e alguns se recusam a fazê-lo—, permanecem em uma espécie de purgatório. Memória, luto e experiência são o fundamento desse filme japonês.
É uma obra livre dos truques aos quais estamos acostumados no cinema ocidental. Uma certa capacidade meditativa é necessária para poder apreciá-lo. Pois se trata de ir além da agitação dos roteiros mirabolantes, das imagens estroboscópicas e da trilha sonora que antecipa e conduz os afetos a pulso.
Se eu tivesse que responder à provocação do diretor, diria que um hábito prosaico da minha semana está no páreo. O ponto alto da minha agenda, subtraídos os picos de fúria e os de euforia, tem sido os cafés da manhã de domingo. Poupo o leitor dos detalhes dessa experiência íntima para assegurar que a mais simples das refeições encerra, hoje, o momento mais esperado da minha semana, sempre tão agitada.
Não serão postadas fotos dela nas redes sociais, porque não existem. Tampouco tenho como justificar a razão de esse ser um momento tão especial, embora saiba que com quem compartilhamos nossas vidas seja da maior relevância.
Mas não só. No filme de Kore-eda, entre as cenas selecionadas pelos mortos, um homem escolhe um voo de avião num dia de sol. Outro, a sensação do vento no rosto.
Num mundo constantemente chacoalhado por notícias extremas e que supervaloriza a mania —enquanto afunda nos maiores índices de depressão de sua história—, a fruição carece de ser reconhecida.


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