segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Vera Iaconelli - Entre o desespero e a euforia. FSP

 Deve existir algo entre o assombro de uma chacina e a antecipação do Carnaval. Um respiro que nos coloque para além das experiências de horror ou de epifania, que sempre andam juntas.

Quando estávamos às vésperas de quase reeleger o pior governo da nossa história, responsável, por ação e por omissão, pela morte de milhares de brasileiros, fui a uma festa. O primeiro turno tinha embaralhado as cartas e acreditar numa saída dependia apenas da aposta pessoal de cada um. Não havia qualquer garantia de que não iríamos incorrer no mesmo descalabro.

Era uma festa dançante e uma alegria genuína e desesperada pairava no ar. A alegria de quem sabe que pode cair a qualquer momento. Não à toa estamos entre os povos mais festeiros do mundo. Há algo de epifânico em saber que cada festejo pode ser o último. Nada se torna mais valioso e digno de gozo do que aquilo que antecede o risco, que, para nós, tem sido permanente.

Quatro homens estão reunidos em um espaço aberto com arquitetura colonial ao fundo. Dois deles tocam uma grande bola amarela atrás do homem de camisa azul. Eles vestem roupas dos anos 1970, incluindo camisa xadrez, gravata e camisas de manga comprida.
Cena de 'O Agente Secreto' - Divulgação/Vitrine Filmes

A cerveja fica mais gostosa e o samba mais sambável. Algo que o filme "O Agente Secreto", de Kleber Mendonça, explora com maestria. O prazer a mais vem do sentido de urgência, como sabem os recém-apaixonados, para quem cada separação é sentida como perda irreparável. Cada segundo longe do amor é um misto de antecipação e angústia.

Mas existe outro ponto, não afeito aos extremos, equidistante entre o desejo ardente e a fúria destrutiva. Há momentos nos quais conseguimos fruir, sem grandes expectativas ou lutos. No filme "Depois da Vida" (1998), o diretor Hirokazu Kore-eda, mais conhecido no Brasil por "Pais e Filhos" e "Assunto de Família", nos coloca diante de uma questão difícil: se você tivesse que escolher uma cena para viver para sempre, qual seria?

Enquanto os personagens escolhem a memória que os acompanhará pela eternidade e alguns se recusam a fazê-lo—, permanecem em uma espécie de purgatório. Memória, luto e experiência são o fundamento desse filme japonês.

Criança vestindo roupa escura sentada em balanço feito de corda amarrada a troncos finos em área com chão coberto por folhas secas.
Cena de 'Depois da Vida', de Hirokazu Kore-eda - Divulgação

É uma obra livre dos truques aos quais estamos acostumados no cinema ocidental. Uma certa capacidade meditativa é necessária para poder apreciá-lo. Pois se trata de ir além da agitação dos roteiros mirabolantes, das imagens estroboscópicas e da trilha sonora que antecipa e conduz os afetos a pulso.

Se eu tivesse que responder à provocação do diretor, diria que um hábito prosaico da minha semana está no páreo. O ponto alto da minha agenda, subtraídos os picos de fúria e os de euforia, tem sido os cafés da manhã de domingo. Poupo o leitor dos detalhes dessa experiência íntima para assegurar que a mais simples das refeições encerra, hoje, o momento mais esperado da minha semana, sempre tão agitada.

Não serão postadas fotos dela nas redes sociais, porque não existem. Tampouco tenho como justificar a razão de esse ser um momento tão especial, embora saiba que com quem compartilhamos nossas vidas seja da maior relevância.

Mas não só. No filme de Kore-eda, entre as cenas selecionadas pelos mortos, um homem escolhe um voo de avião num dia de sol. Outro, a sensação do vento no rosto.

Num mundo constantemente chacoalhado por notícias extremas e que supervaloriza a mania —enquanto afunda nos maiores índices de depressão de sua história—, a fruição carece de ser reconhecida.

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