A remuneração dos magistrados está fora dos "limites de contenção" e impacta a credibilidade do Poder Judiciário no Brasil. Quem diz isso é o novo presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, que tem votado contra benefícios que a magistratura quer conceder a si própria.
"Nós somos servidores públicos. Não há razão para criarmos remunerações indiretas com palestras pagas, isso é absolutamente conflitante com os interesses do exercício da jurisdição. Não podemos ser ‘coaches’. A nossa remuneração não pode ser resolvida por nós mesmos, tem que ser resolvida por uma PEC [proposta de emenda à Constituição]", afirma Vieira de Mello Filho à Folha.
O ministro, que assumiu o comando do TST no fim de setembro, também critica a possibilidade de o STF (Supremo Tribunal Federal) ser a instância a decidir regras para motoristas de aplicativos. "O Supremo não tem expertise ou conhecimento da realidade para poder definir isso judicialmente", diz.
Vieira de Mello Filho insiste na necessidade de a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) ser atualizada para proteger esses trabalhadores e diz não acreditar em previsões das empresas de que a criação de algum tipo de vínculo vá resultar em vagas fechadas e renda menor. "[Isso é] Discurso de terrorismo."
Recentemente, durante uma sessão do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, o senhor votou contra um pedido de pagamento de licença compensatória a juízes substitutos, retroativo a 2015, e questionou a autoconcessão de benefícios da magistratura. O senhor acha que esse é um problema que precisa ser enfrentado?
É o primeiro problema que tem que ser enfrentado. É preciso ter transparência na remuneração dos magistrados. Não estou defendendo que ninguém ganhe mal, mas as coisas estão fora do limite de contenção. Precisamos trabalhar uma nova perspectiva, e muito rápida, de que haja uma absoluta transparência no que nós recebemos. Somos servidores públicos. Não há razão para criarmos remunerações indiretas com palestras pagas, isso é absolutamente conflitante com os interesses do exercício da jurisdição.
Não podemos ser'"coaches'. Nossa remuneração não pode ser resolvida por nós mesmos, tem que ser resolvida por uma PEC que coloque as possibilidades. Claro que vamos ter algumas gratificações que são imprescindíveis, como a de comarca de difícil localização, mas isso tem que ser exceção. Temos um problema de acumulação de varas pelo mesmo juiz, por falta de magistrado. São situações específicas.
Não é toda hora que a gente tem que discutir alguma coisa porque alguém definiu não sei onde, então vamos ter que trazer isso para cá. As coisas não funcionam assim. Eu tenho que cumprir aquilo que está decidido, que já foi determinado. Mas a remuneração da magistratura impacta a credibilidade, a legitimidade e a autoridade do Poder Judiciário brasileiro. Por isso ela tem que ser clarificada de forma bem objetiva e sem tergiversação. Ninguém entra na magistratura para ficar rico. Eu sou juiz há 39 anos. Nunca na minha vida eu postulei um aumento de salário.
Há medidas concretas que o senhor pretende tomar em relação a isso?
Isso não depende de mim ou de um segmento. É preciso que haja uma atuação do Conselho Nacional de Justiça. O ministro [Edson] Fachin instalou o Observatório de Integridade do Poder Judiciário, que é um marco, e pode levar a soluções positivas. Ele é fundamental para a gente fazer uma reavaliação do Poder Judiciário com relação à conduta ética, à integridade, à transparência das nossas remunerações. Quando eu estava no CNJ [Conselho Nacional de Justiça], tinha a maior dificuldade de saber quanto os tribunais pagavam. Isso me levou a um inconformismo muito grande. Eu, integrante do Judiciário, como conselheiro da República, não conseguia ter o acesso às folhas de pagamento.
O senhor falou recentemente que, na questão da uberização, o dilema é equilibrar avanço tecnológico com a proteção social. O que seria necessário regulamentar?
Eu tenho defendido a necessidade de uma legislação especial para esse tipo de trabalho. Vamos imaginar a seguinte hipótese: um entregador sofreu um acidente, teve um pedaço da perna mutilado e entrou com uma ação trabalhista, pedindo uma reparação. Qual é a posição do juiz do trabalho hoje? Ou vamos reconhecer a incidência da CLT ou vamos dizer: "Não, não tem proteção nenhuma". É um absurdo completo. O que fez a Justiça do Trabalho? A maioria falou: "Vou reconhecer aqui o direito à proteção, a responsabilidade da plataforma", e aí fomos acusados de estarmos legislando, de sermos ativistas.
Eu tenho me batido muito para que o Congresso avance na edição de uma lei que possa regular esse tipo de trabalho. Há uma comissão especial na Câmara, e já há um relator designado. Tive a oportunidade de conversar com ele. Há inúmeras abordagens que estão amparadas pela CLT. Qual é o ponto de apoio desses trabalhadores? Eles têm direito à desconexão sem punição? A questão remuneratória deles é completamente diferente. Entre os trabalhadores em plataforma, alguns preferem por hora, outros querem uma remuneração estabelecida pelas entregas. Tenho conversado com eles. Tenho me colocado como uma voz, porque, se deixar isso caminhar no Congresso só com a iniciativa das plataformas, vamos ter um resultado que não vai atender a realidade. O algoritmo é muito pior que o controle de um empregador pessoal, porque ele tem a geolocalização, sabe onde a pessoa está o tempo todo.
Existe um conjunto mínimo de proteções que o senhor acha que deveriam ser contempladas?
Direito à desconexão, remuneração que corresponda à realidade deles, pontos de apoio aos entregadores e 'ubers', uma previdência que não imponha custos para eles. Precisamos de um seguro, e temos de pensar em uma política associativa, porque tem que ter representatividade, não pode dialogar difusamente. Não podemos admitir a remuneração por tempo de entrega. Assim, quanto mais rápido você for, mais vai ganhar, ou vai ter um bônus. Você está matando todo o mundo. Tem que proibir esse tipo de gamificação da entrega. Além disso, havendo um aumento no preço para a plataforma, o motorista tem de ganhar sobre o que foi efetivamente pactuado entre o consumidor e a plataforma.
Muitos trabalhadores de aplicativos afirmam que não gostariam de ser CLT. O senhor acha que eles deveriam ser: CLT, autônomos ou uma terceira via?
Uma terceira via. Precisamos de uma outra legislação, como nós tivemos a CLT no período fabril, a legislação dos trabalhadores rurais, depois a do trabalhador dos portos. São modos diferentes de prestar o serviço, a gente precisa de uma atualização da CLT, mas não aquela reforma de 2017, porque aquela foi unilateral.
Com a revolução digital, nós temos o mesmo fenômeno da Revolução Industrial com relação à questão social, que veio em face da exploração do trabalho humano. Essa exploração gerou um movimento trabalhista, inclusive no Brasil, no início do século 20. Então, quando veio a CLT, ela estava suprindo uma reclamação do povo, que geraria um conflito social muito grave. Ela fez uma pacificação da relação capital-trabalho. A revolução digital está gerando o mesmo processo de proletarização e pobreza.
Passando da discussão sobre a uberização para a pejotização extrema, quem vai pagar a dívida previdenciária se a população envelhece, empobrece e eu acabo com os empregos? As pessoas não estão entendendo que a ruptura do tecido social vai levar a uma convulsão muito grave, como levou no início do século 20. Esses trabalhadores foram apropriados por um discurso do poder econômico. Quando estive com eles, eu perguntei: "Qual o conceito de autonomia para vocês?". Se você não precifica, você não é autônomo. Eles foram trabalhados por uma cultura que desvia da ideia de poder econômico, de apropriação do trabalho deles, e adota um discurso identitário, de você vai ser autônomo, empreendedor. Mas eles querem férias, descanso, 13º.
O senhor chegou a mencionar que seria bom se as pessoas pudessem escolher o regime de trabalho na plataforma. Como seria isso?
São estes três modelos: quem complementa a renda, quem vive da plataforma e quem é celetista. Por exemplo, eu quero complementar a renda, então eu vou trabalhar 25 horas semanais pela plataforma, e o algoritmo encerra na 25ª hora. E quem é CLT vai trabalhar com regime da CLT, o que fizer de hora extra vai receber. Mas ele tem o direito de escolher, porque não se pode dizer que todo o mundo quer ser autônomo. Em um período de alguns anos, muitos não aguentam mais, porque o regime de trabalho é contínuo. Você não desliga, leva à exaustão e a acidentes.
Empresas citam pesquisas [encomendadas por elas] mostrando que, com criação de vínculo empregatício, poderia haver uma redução de 50% no número de pessoas nessas ocupações e diminuição de renda de 30% dos que ficassem.
Isso faz parte do discurso de apropriação, porque no mundo inteiro há reconhecimento de vínculo: na Inglaterra, na Espanha, na Itália, em Portugal, em parte dos Estados Unidos. Não vai ter redução de nada. É o mercado, entra um, sai outro. É discurso de terrorismo. E se houver? A gente tem vários recursos, cooperativas, associações, os taxistas que estão migrando para plataformas têm uma série de regras, de compromissos. São dez anos [sem proteção para essas pessoas]. Uma hora tem que sair alguma coisa. Espero que isso venha do Congresso, não do Supremo, porque o Supremo não conhece a realidade deles. Vai querer fazer uma analogia com algo que está dentro da CLT, quando precisamos uma legislação bem diferente, nova.
Eu falei recentemente com o ministro [do STF] Flávio Dino e ele defende direitos constitucionais trabalhistas. Ele diz que o trabalho existe, independentemente de ser autônomo ou CLT, e seria o básico ter os direitos que estão na Constituição. O senhor acha que o Supremo não garantiria isso?
O Supremo não tem expertise ou conhecimento da realidade para poder definir isso judicialmente. Eu espero que o Supremo não decida antes que o Congresso faça alguma coisa, porque, se decidir, o Congresso vai focar aquilo que foi decidido para construir alguma coisa. O Congresso atuando de forma ágil, ouvindo todos os interessados, contemplando os pedidos, vai produzir uma lei para ser aprovada e fazer com que aquele processo não seja necessário.
Gostaria que o senhor fizesse um balanço desses oito anos da reforma trabalhista. Tudo que foi aprovado ali é ruim? Não teve nada positivo?
Aquela reforma atingiu pilares da legislação trabalhista que são muito delicados. Primeiro na parte coletiva, ela dizimou os sindicatos, não tem outra palavra. Eles não têm nenhuma capacidade econômica. Eu não digo que aquilo não precisava ser mudado. Precisava, mas não daquela forma. A destruição do sindicato sem uma outra fórmula ou um período de descompressão foi terrível.
Vamos usar uma metáfora de um professor mineiro. É como um elevador. Quando eu tinha a convenção coletiva, ele saía do térreo e ia para o primeiro andar. Hoje, a negociação coletiva vai do térreo para o subsolo. Ela retira o direito. Veja a situação da pejotização. Cinco milhões e meio de trabalhadores celetistas migraram para pejotizados e continuam no mesmo local. Isso, para mim, tem um nome: chama-se fraude. É a precarização, não há amparo. Basta sofrer um acidente e acabou. Não precisa nem ser no trabalho. Pode cair em casa, quebrar uma perna. Pronto, você não tem mais renda. A gente está assistindo a uma ruptura do tecido social.
RAIO-X | Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 64
Belo Horizonte, 1961. Formado em direito pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), ingressou na magistratura trabalhista em 1987 e passou a compor o TRT-MG (Tribunal Regional do Trabalho de Minas Gerais) em 1998. Em fevereiro de 2006, foi empossado ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), onde atua como presidente desde setembro deste ano.

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