Carlos Melo*, O Estado de S. Paulo
24 de setembro de 2019 | 12h26
Coberto de expectativas e incertezas, numa sessão presidida pela Nigéria, o presidente Jair Bolsonaro tomou lugar na tribuna da Assembleia-Geral da ONU. Com muito desgaste, o Brasil ocupou posição central nas atenções do mundo nos últimos meses; o País que sempre teve o que dizer sobre preservação ambiental de repente passou a negar os problemas do clima e transformou-se num dos grandes verdugos do meio ambiente. Esperava-se que o presidente desfizesse esta impressão.
Com efeito, desde a campanha eleitoral, Bolsonaro tem agido de modo no mínimo controverso. Instiga ambientalistas, cientistas, indigenistas, a mídia internacional; de modo arrebatado, nada cauteloso, tem insistido em anunciar um modelo de desenvolvimento que, praticamente, se daria a despeito - ou até ao arrepio - de cuidados com a natureza, indiferente a consequências sociais, políticas, climáticas e ambientais desse tipo de ação. Alheio ao potencial político do tema.
Como assinalou editorial de O Estado, o clima tornou-se uma questão política: “a questão climática é uma das poucas capazes de mobilizar hoje uma juventude crescentemente alheia à política e fechada em suas redes sociais (...) a nenhum governante é permitido ignorar esse fenômeno, que consolida o tema ambiental como o principal tópico político no planeta”. Trata-se do tema internacional de maior sensibilidade política.
A postura assumida no Brasil, no entanto, não reflete posicionamento isolado nem impensado: Bolsonaro e seus aliados mais próximos têm se alinhado a uma visão internacional tão medieval quanto agressiva, que enxerga a China como o grande inimigo do Ocidente, critica a globalização e, em alguns casos, chega mesmo a negar que a terra seja redonda.
Ao mesmo tempo em que o mundo vivia a expectativa de seu discurso, o Brasil tomava conhecimento do encontro de seu filho, Eduardo, com Steve Bannon - o ex- estrategista de Donald Trump, agitador da direita internacional e hoje persona non grata na Casa Branca. O indicado à embaixada do Brasil em Washington posava ao lado do guru internacional, indicando que a Amazônia é usada por “globalistas” (sic) para atacar o Brasil e o presidente da República.
Com isso tudo, não seria mesmo de esperar um gesto de conciliação; uma mão estendida ao entendimento mundial. De modo que não é de admirar que Bolsonaro tenha subido à tribuna da Assembleia-Geral disposto a dobrar a aposta.
Antes de tudo, seu discurso caminhou pela via da tergiversação e por suas fantasias particulares e de grupo. Martirizando-se como vítima de uma conspiração “de esquerda” que a polícia de seu governo não foi capaz de comprovar, agradeceu por sua vida assumindo o caráter de herói. Depois, afirmou estar disposto a restituir a verdade, a sua verdade. Buscou assim seus espantalhos de costume, favoritos: “o Brasil ressurge depois de estar à beira do socialismo”, disse. Apontou um País em que havia ataques aos valores da família; ao mesmo tempo em que apelou ao perigo comunista, nominando a Venezuela e a Cuba. Voltamos à Guerra Fria, uma esquálida, guerra fria, admita-se.
Em contraposição ao perigo socialista que se delineava, buscou o conforto - desde sempre controverso - do “sucesso” que alardeia de ações econômicas de seu governo, que ainda hoje ostenta índices tenebrosos de desemprego e estagnação econômica; que começa a recolher críticas de inação e falta de projeto. No campo do combate à corrupção, escudou-se na popular figura de Sérgio Moro, ostentando-o como um bibelô, outdoor. Sem revelar que o tem esvaziado, num conflito já quase explícito. Jactou-se do que ainda não fez de modo tão sincero que talvez acredite mesmo que já o tenha feito.
Em relação à Amazônia, de fato, não houve acordo. Não explicou a contrariedade com os dados do Inpe, sua rejeição à comunidade científica e muito menos a chuva de fuligem que cobriu a cidade de São Paulo, há algumas semanas. Pelo contrário, afirmou um “compromisso solene com a Amazônia”, indicando que “somos um dos países que mais protegem o meio ambiente” sem perceber que, por questão lógica, torna-se obrigado a reconhecer o esforço de governos anteriores, posto que o seu tem apenas pouco menos de 9 meses.
Minimizando os problemas, admitiu, sim, a existência de queimadas criminosas, mas causou constrangimento ao afirmar “também praticadas por índios”, preferindo mencioná-los ao invés de reconhecer ação de grileiros e maus agricultores. No mais, tudo seria obra de “ataques sensacionalistas despertados pela mídia internacional” e - sem citar a França - de “um ou outro país” que “de forma desrespeitosa” atenta contra a soberania do País.
Nas entrelinhas, foi um discurso de confrontação à França e à Europa, como também de alinhamento e bajulação a Donald Trump. O qual, aliás, falando logo após o brasileiro, martelou nas mesmas teclas de Bolsonaro: Venezuela, Socialismo e Cuba (eis aqui a conexão com Bannon). Aos olhos do mundo, Bolsonaro emerge como pastiche de Trump.
Voltando à questão indígena, Bolsonaro indicou interesses claros: “O Brasil não aumentará sua área indígena”, lançando os olhos sobre as riquezas das reservas Yanomami e Serra do Sol. Atirou no espantalho das ONGs e revelou aí sua estratégia: dividir o inimigo, desqualificando sua liderança: Raoni “é massa de manobra (...) acabou o monopólio do senhor Raoni (...) a visão de um líder indígena não representa” todos os índios. Comprovou isto lendo carta de “uma comunidade indígena” que hipotecava a ele, Bolsonaro, total apoio.
Ao final, fez lembrar Carlos Alberto Parreira, que após os 7 x1, sacou do bolso a carta de uma tal de “Dona Lúcia”, acrítica e solidária ao técnico Felipão. Por quanto tempo ainda esse sentimento de 7 x 1 acompanhará o Brasil?
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