quarta-feira, 19 de novembro de 2025

'Cala a boca já morreu' morreu mesmo, Ruy Castro _FSP

 Dez anos se passaram desde que, em junho de 2015, a ministra do STF Cármen Lúcia liquidou com a censura prévia que dois impertinentes artigos do Código Civil impunham às biografias produzidas no Brasil. Por esses artigos, os biógrafos eram obrigados a pedir a autorização de seus biografados ou dos herdeiros deles para investigar-lhes a vida e descrevê-la em livro. Se essa obrigação parece justa ao leigo, imagine um biógrafo alemão tendo de pedir à família de Adolf Hitler que o autorizasse a escrever uma biografia do homem. O Brasil era o único entre as democracias a praticar esse estrupício —e, não por acaso, debochado pelos de fora ao saberem que aqui era assim.

A luta pela independência da biografia já vinha de anos, parada na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, então dominada por malufistas. Enquanto isso, absurdos se sucediam. Roberto Carlos conseguiu proibir, apreender e talvez destruir uma biografia que lhe era perfeitamente laudatória. As filhas de Guimarães Rosa tiraram de circulação um livro que tratava de Rosa como cônsul em Hamburgo na Segunda Guerra porque o livro dava o justo destaque a Aracy de Carvalho, segunda mulher do escritor e cuja existência elas "não reconheciam".

A coisa piorou quando, liderados pelo impenitente censor Roberto Carlos, importantes artistas se juntaram para tentar amordaçar de vez os biógrafos —atitude incompreensível, já que eles próprios tinham sido vítimas da censura da ditadura. O caso foi para o STF e, num parecer de 120 páginas, a relatora Cármen Lúcia fez uma candente defesa da liberdade de informação. Nove ministros da corte a seguiram e celebrou-se a independência da biografia, resumida na frase de Cármen Lúcia, "Cala a boca já morreu".

À ameaça de que, livres, os biógrafos iriam bisbilhotar a intimidade dos artistas, escrevi na época que isso não aconteceria. Não fazia parte da índole dos biógrafos brasileiros, garanti.

Dez anos depois, ninguém até agora teve a intimidade bisbilhotada. Nem Roberto Carlos.

Capa da biografia não autorizada "Roberto Carlos em Detalhes", escrito pelo jornalista Paulo César Araújo - Reprodução

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