domingo, 26 de outubro de 2025

Verde para milhões, Ruy Castro ,FSP

 

Rio de Janeiro

É uma sensação de estar em casa. O Parque do Flamengo, aqui no Rio, inaugurado em outubro de 1965, está fazendo 60 anos. Um mês depois, minha família se mudou para a rua do Russel, de frente para ele, e tive seu 1,2 milhão de metros quadrados como uma espécie de quintal. As pessoas o chamam de Aterro, porque foi feito sobre uma nesga da baía engolida pelo desmonte do morro no largo da Carioca. Mas, se fosse só um aterro, seria uma rede de autopistas, uma terra de ninguém. Lota de Macedo Soares, assessora de Carlos Lacerda, governador da Guanabara, fez dele um parque.

Naqueles primeiros tempos, cruzei-o a pé todos os fins de tarde para assistir aos clássicos na Cinemateca do Museu de Arte Moderna, este, obra de Affonso Eduardo Reidy. As 11.600 árvores de 190 espécies, recém-plantadas por Burle Marx, ainda eram baixinhas. Ao seu lado, à noite, os pilotis do Monumento aos Mortos da Segunda Guerra eram ideais para namorar, porque o soldado, postando guarda lá em cima, não podia se afastar da chama. E, do que sobrou de terra nasceu a quilométrica praia do Flamengo, onde, secularmente, só havia uma microfaixa de areia.

Oásis como o Parque do Flamengo são essenciais numa cidade. O ideal seria que houvesse algo parecido ao alcance de cada zona residencial e a que se pudesse chegar caminhando. Nesse sentido, o Rio é bem servido, com 68 deles, entre os quais o Parque Nacional da Tijuca, o da Pedra Branca, o de Madureira, o Parque Lage. E o querido Passeio Público, na Lapa, o primeiro espaço de lazer no Brasil, inaugurado em 1783, e em terrível necessidade de restauração.

Gostei de saber que, em seu 60º aniversário, o Parque do Flamengo vive o seu apogeu, com 18 ou 19 milhões de usuários por ano. Lota, que morreria dois anos depois de doá-lo à cidade, se sentiria realizada.

Cruzo-o de táxi duas vezes por semana, a caminho da Academia Brasileira de Letras, e continuo besta com aquela abundância e variedade de verde. Ao fundo, solene, entre as árvores, o Pão de Açúcar.

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Vista aérea mostra a Praia de Botafogo com areia clara e poucas pessoas, vegetação densa ao lado, quadras esportivas e avenida movimentada à direita. Ao fundo, o Pão de Açúcar e morros sob céu nublado.
Pista do aterro do Flamengo à direita, com parque e praia à esquerda e Pão de Açúcar ao fundo - Eduardo Anizelli / Folhapress - Eduardo Anizelli/Folhapress

O STJ tem mais o que fazer, Becky S. Korich, FSP

 Algumas decisões judiciais parecem vir do além. Mas não é todo dia que um morto vem de outras esferas para testemunhar a sua própria morte.

Semana passada, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça enfrentou uma questão de suma importância para o direito brasileiro. A discussão ‘sub judice’ era se o ‘de cujus’ poderia, ‘post mortem’, figurar como testemunha do próprio crime, comunicando-se per ‘medium scriptum’. Em bom português: decidir se um espírito pode ser testemunha em processo crime.

O caso envolve um homem denunciado por três homicídios em Mato Grosso do Sul. Durante a investigação, uma testemunha afirmou ter atuado como médium e psicografado mensagens enviadas pela vítima fatal.

Placa com a inscrição 'Superior Tribunal de Justiça' em frente ao prédio do tribunal em Brasília. Edifício moderno com janelas azuis e detalhes geométricos em concreto, sob céu claro.
Marcello Casal Jr - 19.ago.20/Agência Brasil

Ministério Público achou a carta psicografada convincente, afinal não é sempre que um morto se dispõe a colaborar com a investigação sobre seu próprio assassinato.

A defesa, menos espiritualizada, contestou a prova. Mas o meritíssimo recebeu o documento como válido para compor o conjunto probatório. O Tribunal de Justiça local não arredou pé e confirmou a brilhante decisão de primeiro grau.

Por analogia, poderíamos estender o rol probatório para outras ciências, ocultas ou não. O mapa astral do acusado, por exemplo, poderia ser uma prova pericial contundente (atenção: Júpiter em Escorpião costuma ser mau presságio para quem tenta provar inocência). Até borras de café: se elas revelam traições, por que não revelariam indícios para esclarecer homicídios?

Talvez fosse o caso de atualizar o currículo das faculdades de Direito para incluir Esoterismo Jurídico Aplicado, Tarô Constitucional, Astrologia Forense e Leitura de Mãos Processuais.

A verdade é que, se existissem vários Chicos Xavier, com poderes tão reais quanto sobrenaturais, metade dos julgamentos se resolveria sozinha. A alma da vítima faria a reconstituição dos fatos e pronto: restaria ao juiz —ou à inteligência artificial— apenas formalizar a sentença com base nos fatos revelados do outro plano. Além da celeridade, seria o fim dos erros judiciais. Porque uma coisa é certa: mortos não mentem.

O único problema é o contraditório. Como interrogar um espírito sob juramento? Uma alternativa seria conduzir audiências em sessões mediúnicas: o juiz em torno da mesa girante, incenso na sala e causídicos treinados para entrar em transe para captar vibrações ectoplasmáticas do morto, ao vivo.

O STJ, no entanto, decidiu impor limite à criatividade probatória e (pasme!) reconheceu a inadmissibilidade da psicografia como prova. O processo volta agora para o mundo dos vivos. Em suma: temos que ter fé na Justiça, mas ela não pode se mover pela fé.

surrealismo não para aí. De tempos em tempos, o Judiciário se transforma num laboratório de possibilidades jurídicas e os tribunais se veem obrigados a conceder a causas bizarras o mesmo zelo reservado a teses constitucionais. Como o caso do casal que levou até as últimas instâncias a disputa pela guarda de um papagaio ou o da funcionária que recebeu indenização por danos morais porque o chefe fumava maconha no expediente.

Mais espantoso do que ouvir vozes do além, foi o caso do homem que impetrou habeas corpus para voltar a morar com a ex-esposa. Perto disso, o testemunho do morto soa mais verossímil. Aguardemos se algum recurso ainda virá da instância superior.

Vulgar especulação de cargos e propinas, Marcus André Melo, FSP

 

Que o Brasil viva, na conjuntura atual, um malaise político não deveria surpreender. Trata-se de um traço constitutivo da nossa experiência republicana, em que interregnos de entusiasmo cívico são espasmódicos. Há um século, esse malaise já se manifestava no desencanto da primeira geração republicana. Como escreveu Vicente Licínio Cardoso —cuja obra póstuma "À margem da História da República" (1933) reúne reflexões amargas sobre os fracassos dos governos republicanos—, "a grande e triste surpresa de nossa geração foi sentir que o Brasil retrogradou".

Falava-se, como hoje, em retrocesso democrático e de políticas. Para Cardoso, a história "não deve ser fabricante de elogios nem depósito sebento de críticas póstumas"; ela deve apontar o fracasso rotundo do país em áreas vitais, como a educação pública —"nossa tragédia".

Na literatura, ninguém exprimiu o desencanto cívico como Lima Barreto. Há pouco mais de um século, ele observou que "a política não é aí uma grande cogitação de guiar os nossos destinos; porém, uma vulgar especulação de cargos e propinas". Pouco mudou. O debate sobre cargos e propinas foi interditado desde o mensalão e a Lava Jato, em nome de uma suposta "criminalização da política". O resultado foi o desmantelamento de práticas institucionais, em vez da correção dos desvios: jogou-se fora o bebê com a água do banho. O desafio redobrou.

Menos de um terço dos brasileiros acredita que o país está na direção certa, segundo a Quaest. A corrupção —da qual o escândalo do INSS é um exemplo— ganhou proporções faraônicas e capilaridade, envolvendo inclusive o Judiciário. Criou-se um clima de Vale Tudo. Agora ela se entrelaça com a percepção de que o crime organizado penetrou as entranhas do Estado. Soma-se a isso a avaliação —apressada e equivocada, como analisei aqui na coluna— de que escapamos por um triz da derrocada da democracia.

O embaixador Rubens Ricupero evocou a imagem de "O Anjo Exterminador", de Luis Buñuel: os convidados querem deixar a festa, mas, por um motivo inexplicável, não conseguem transpor a porta de saída. "Essa imagem lembra o que está acontecendo no Brasil neste momento."

Cena de 'O Anjo Exterminador' (1962), de  Luis Buñuel
Cena de 'O Anjo Exterminador' (1962), de Luis Buñuel - Divulgação

A Nova República é marcada, contudo, por um padrão de malaise distinto dos períodos anteriores. Há uma dimensão adicional aqui com raízes institucionais: resultam do nosso desenho consensualista. O presidencialismo de coalizão, tal como se consolidou, gera o que a teoria democrática chama de baixa (ou inexistente) clareza de responsabilidade. Isso decorre da fragmentação partidária e do caráter hiperminoritário do Executivo.

O que confere singularidade ao caso brasileiro é a exacerbação desse problema por um Judiciário hiperprotagonista. Quando a responsabilidade por decisões e resultados é difusa, prospera o cinismo cívico: o eleitor não sabe a quem punir ou premiar. O Executivo transfere responsabilidades ao Legislativo e ao Judiciário —e vice-versa. Mais que isso: os próprios limites entre governo e oposição se esgarçam na formação de coalizões inusitadamente heterogêneas.

Não há paralisia decisória, mas falta de rumo.