quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Sou marxista pra valer, ainda odeio a classe média e não quero entrar no século 21, diz Marilena Chaui, FSP

  

Fernanda Mena
Fernanda Mena

Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

[RESUMO] Em entrevista à Folha, Marilena Chaui, filósofa e professora emérita da FFLCH-USP, analisa que condenação de Bolsonaro abre nova percepção sobre o Brasil, mas se declara pessimista sobre o país, em um momento em que a extrema direita se fortalece e a esquerda parece perdida e fragmentada, até mesmo pela ação dos movimentos identitários. Na conversa ela reafirma e reforça a famosa declaração de que odeia a classe média, defende a visão marxista de que a economia é o melhor método de pensar o mundo e compara o cancelamento a um assassinato.

Doze anos depois de ter causado reações inflamadas à direita e à esquerda, ao declarar que odiava a classe média, a filósofa Marilena Chaui, 84, reitera sua opinião.

"Eu odeio a classe média até o fim dos meus dias", disse à Folha. "A classe média funciona oprimindo os dominados e bajulando os dominantes. Por isso ela é odiosa."

Chaui, que lança o livro "Filosofia, um Modo de Vida" (Planeta), tem acompanhado atentamente os acontecimentos recentes da vida política brasileira. Considera que o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) inaugurou uma nova percepção do Brasil como país, embora afirme ter uma visão "muito pessimista" da sociedade brasileira. "Sobretudo porque a autoimagem é de um povo generoso, acolhedor, sem preconceitos, mesmo quando no cotidiano a violência racista, machista e de classe está inscrita."

Mulher idosa com cabelo curto e óculos, vestindo suéter listrado em tons de bege, laranja e marrom, e cachecol laranja, sentada em cadeira preta, gesticulando com as mãos. Fundo apresenta padrão gráfico com linhas curvas brancas sobre azul e formas geométricas vermelhas e brancas.
Marilena Chaui, filósofa e professora emérita da FFLCH-USP, em entrevista na editora Planeta, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Considerada uma das principais intelectuais brasileiras, suas reflexões sobre democracia, autoritarismo e ideologias ajudam a iluminar o atual momento histórico de certa forma simbolizado pela atuação de Donald Trump na Casa Branca. Chaui avalia que o presidente dos EUA está "desinstitucionalizando" seu país e representa o fim do império americano.

Neste ano, Chaui também teve seu grande livro de divulgação, "O que É Ideologia", da coleção Primeiros Passos, relançado sob o título "Ideologia, uma Introdução" pela Boitempo, com dois capítulos inéditos, um sobre ideologia da competência e outro sobre ideologia neoliberal. Os mesmos temas são abordados na série de reedições de sua obra pela editora Autêntica.

Na visão da professora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, o neoliberalismo "de um lado fragmenta a classe trabalhadora e o pensamento de esquerda; de outro, agrupa e reúne a direita". Um de seus temores em relação ao campo político da esquerda é justamente a fragmentação que pode ser causada por movimentos identitários. "Na fragmentação, você não consegue formar uma totalidade política e se torna muito vulnerável à extrema direita, que é onde essa totalidade se forma."

Crítica feroz do que classifica como relação de dependência com o mundo digital, ela afirma não querer entrar no século 21, e que o celular e as redes sociais podem ser entendidos como uma alegoria contemporânea da caverna de Platão. "O celular como tal é isso: o mundo imaginário da imagem. Só."

Leia, a seguir, os principais trechos da conversa de Chauí com a Folha, em rara entrevista à imprensa.

O julgamento histórico da trama golpista e o relativo apoio popular da prisão de Bolsonaro significam que a sociedade brasileira está se tornando menos autoritária e mais democrática?
É a primeira vez na história do Brasil que um atentado contra a democracia é impedido e punido. Não acho que isso signifique que a sociedade brasileira se tornou menos autoritária.

A sociedade se deu conta de que os interesses privados da família Bolsonaro determinaram os acontecimentos na esfera pública dos direitos. Descobrimos que um dos pilares da democracia é a distinção entre interesse privado e direito público. A indistinção sempre foi a marca de nosso autoritarismo social e político.

Mas, se a intervenção de Trump não tivesse acontecido, ou melhor, a intervenção do secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, talvez a coisa ficasse mais diluída. Os EUA agora interferiram na economia, no trabalho, no emprego, em tudo. E acrescente-se a isso eles acharem que tinham soberania para atacar o direito, atacar o Supremo brasileiro.

Como o imperialismo dos EUA se reconfigurou com Trump neste segundo mandato?
A visão que eu tenho do Trump é de que ele está desinstitucionalizando os Estados Unidos. Ele faz intervenções pontuais em lugares de conflito: Gaza, Ucrânia, Venezuela... E a resposta que deu a perguntas do motivo disso foi: "Porque eu posso".

Então, a imagem que eu tenho é a do fim do império americano. Trump se apresenta como o portador do antigo imperialismo, mas esse imperialismo está quebrado por dentro.

Do mesmo modo que, no fim do Império Romano, você teve figuras como Calígula e Caracala, nos EUA você tem Trump, ou seja, um desmando no nível da sua própria personalidade, do tipo eu quero, eu posso, eu faço. E isso desinstitui um país e põe em risco todas as relações planetárias estabelecidas.

Por enquanto, ele tem sustentação ideológica por causa do crescimento da extrema direita no mundo. Mas não sei até quando vai esse suporte político.

Quais os vetores da ascensão da extrema direita?
A partir do instante em que o neoliberalismo determina que o Estado deve se ausentar, isso vira um chamariz para a direita trazer o Estado de volta, porque é por meio dele que a direita opera. É um resultado duplo e simultâneo do neoliberalismo. De um lado, ele fragmenta a classe trabalhadora e o pensamento de esquerda. De outro, agrupa e reúne a direita.

Os elementos que organizavam a sociedade —a fábrica, a escola, o hospital— ficam diluídos em empresas. Então, a percepção que a esquerda tem é de uma desagregação do social, que por isso precisa do Estado forte para reintegrar tudo.

E há uma nova direita e uma extrema direita que usam os símbolos nacionais, que miram o Estado nacional e a posse dos instrumentos estatais, ao mesmo tempo em que dão uma resposta ideológica ao desamparo que o neoliberalismo traz.

É por isso que a extrema direita é inseparável do [pastor Silas] Malafaia, do [bispo] Edir Macedo e das versões religiosas que trazem um amparo para essa total fragmentação. A direita usa essa maneira de congregar os indivíduos como suporte social, ideológico e eleitoral da sua ascensão.

Como a condenação de Bolsonaro atinge a direita e a extrema direita no Brasil?
A minha interpretação é de que agora entramos num momento de espera. A extrema direita vai se rearticular, dependendo de qual liderança irá aparecer. Não sei se [o governador de São Paulo] Tarcísio de Freitas tem força para isso.

Se a política é a expressão da sociedade na qual ela se insere, o que dizer sobre um Brasil que elegeu Jair Bolsonaro e depois elegeu Lula por uma margem tão apertada?
Eu tenho uma visão muito pessimista da sociedade brasileira. Sobretudo porque a autoimagem é de um povo generoso, acolhedor, sem preconceitos. Somos o homem cordial. E a nossa bandeira exprime o que acontece conosco.

A nossa bandeira só representa a natureza: o verde das florestas, o amarelo das riquezas, o azul do céu, com as estrelas e o Cruzeiro do Sul, e a ordem e o progresso, que é o mito positivista. Então, é uma bandeira na qual a sociedade brasileira não existe. Existe só a natureza. E na qual, portanto, nós não existimos como história.

Foi produzido o que eu chamo de o mito fundador do Brasil, segundo o qual nós somos um dom de Deus, e um povo que é pacífico, ordeiro, acolhedor e generoso.

Essa ideia se mantém mesmo quando no cotidiano a violência está inscrita. Você tem a violência racista, a violência machista, a violência de classe. Você pode escutar uma dona de casa dizer: "A minha empregada é ótima, não rouba nada". E ela achar que não tem preconceito de classe!

O machismo está espalhado de tal maneira que frequentemente a ação feminista, num embate com esse machismo institucionalizado, erra o foco e atinge justamente aliados.

Um dos aspectos que mais me incomodam e me preocupam é que, no instante no qual a sociedade brasileira vai numa tentativa de democratização, de luta por direitos e garantia de direitos, o risco é esses movimentos se tornarem identitários e fragmentarem a sociedade.

E na fragmentação você não consegue formar uma totalidade política e se torna muito vulnerável à extrema direita, que é onde essa totalidade se forma. Essa fragmentação nos coloca sob o risco de um ataque contínuo da extrema direita, que, essa sim, é um bloco.

Não seria essa fragmentação uma das responsáveis pela atual crise da esquerda?
Em termos mundiais, a esquerda foi enfraquecida pelo neoliberalismo na medida em que ele fragmentou a economia, dispersou o solo em que a consciência de classe se realizava e deslocou o papel do Estado. As famílias se tornaram microempresas. Foram elaboradas a ideia calvinista do empresário de si mesmo e a figura do sucesso como a prova de que Deus está com você e que a sua salvação na vida eterna está garantida.

Se você toma o mundo pré-neoliberalismo, você tem a ideia de democracia social, e o Estado como fonte dessa democracia na promulgação e concretização dos direitos sociais.

Ora, a primeira tarefa que o neoliberalismo se deu foi de dizer que o Estado não pode ter gastos sociais. Desaparece, portanto, o Estado como aquele que investe no social e garante direitos. Você tem um caldo de cultura que esfacela a esquerda, pois todos os seus suportes econômicos, sociais e políticos foram desfeitos. O mundo neoliberal é totalitário.

Como assim?
A gente pensa que o totalitarismo é a hora em que você tem a figura do líder e a sociedade militarizada. Não é isso. O totalitarismo é o instante no qual todas as formas de vida, todas as formas das relações sociais são idênticas.

Então, a escola é uma empresa, o hospital é uma empresa, o indivíduo é uma empresa, a igreja é uma empresa. Isso é totalitário.

Repensar economicamente as referências sociais que garantem uma visão de esquerda, isto é, de transformação, de mudança e de garantia de felicidade, justiça e liberdade, tem sido obra dos movimentos sociais. E é por isso que eu me preocupo muito que eles possam se esfacelar em movimentos identitários, porque eles são os portadores da mudança.

Muito do que tem sido feito pelos governos de esquerda mundo afora é repensar e refazer o tecido social em que, malgrado a ideologia empresarial, as classes sociais existem e a dominação de classe existe. De alguma maneira, o neoliberalismo conseguiu apagar a dimensão econômica do conflito e fazer o conflito se dar só no campo jurídico, político e ideológico.

Desse ponto de vista, embora eu veja todas as mudanças e queira trabalhar com as mudanças, eu sou muito conservadora. Eu conservo a ideia de que, sem a determinação econômica e a compreensão de como a sociedade se estrutura em classes antagônicas, não dá para fazer nada.

Conservadora no sentido de que a senhora é marxista mesmo?
Sou, pra valer. Tem que pensar a partir da economia, senão você pensa só a partir da ideologia. Você começa a ideologizar tudo e corre o risco de ideologizar os movimentos sociais, que passam a ter conflitos entre si e a se dividir internamente também. Muito me preocupa o fato de que possam surgir bolsões de intolerância.

A cultura do cancelamento seria uma expressão desta intolerância?
Até um mês atrás eu não sabia que existia essa figura chamada cancelamento. Ou seja, é o assassinato, né? Não vi ninguém analisar o cancelamento como um assassinato socialmente aceito. E sobretudo entre os mais jovens, há casos de suicídio mesmo.

Eu costumo dizer o seguinte: nasci na primeira metade do século 20, em 1941, e não vou entrar no século 21. Não vou conseguir. A minha relação com o mundo digital e com tudo que ele representa é de antagonismo. Eu não quero, por favor, não quero, não quero. Estou fora.

A senhora não usa aplicativos ou redes sociais?
Uso o celular como telefone e para fazer Pix. Só. Essa coisa chamada WhatsApp, eu nem sei o que é. E nenhuma rede social. Nada, nada. Quando faço essas conferências online, eu peço para as pessoas: "Mande o tal do link 20 minutos antes e tenha uma santa paciência lá do seu lado que eu vou acertar".

E aí, você não imagina, tomo um calmante, porque sei que vou errar no link. Mas não erro. Eu sempre acerto.

O mesmo acontece com relação ao computador. Eu sempre acho que vou apertar um botão errado e vou perder tudo. Meu filho disse: "Não, mãe, você não perde porque está na nuvem". Eu falei: "Bom, então agora estou destruída, porque, se chover, acaba tudo, né?". [risos]

Ao mesmo tempo, tenho problemas filosóficos com o mundo digital e especialmente com esse objeto [faz gesto com a palma da mão como se fosse a tela de um celular]. Eu venho de uma formação pela fenomenologia e, em particular, pelo [filósofo francês Maurice] Merleau-Ponty, que é o universo da percepção. E portanto é o mundo da relação com o espaço vivido, com o tempo vivido, com os símbolos e com a linguagem.

A redução que o digital fez foi tornar o espaço isso aqui [o celular], o tempo isso aqui [o celular]. O mundo da percepção está destruído.

A tela do celular é a nova caverna da alegoria de Platão?
Sem a menor dúvida. E não é porque tem fake news, não. É porque o celular como tal é isso: o mundo imaginário da imagem. Só. Fico muito perturbada com a naturalidade com que isso faz parte da vida das crianças e dos jovens.

Isso aqui é uma droga com a qual se estabelece uma relação de dependência. Mas não só. Você usa esse objeto para se comunicar com quem está ao seu lado. Então, é um empobrecimento do mundo, da linguagem e da criação. Estou muito aterrorizada, mas, é claro, eu sou velha, então não vou ver o que vai acontecer. Eu gostaria de ficar mais uns anos para ter uma ideia do que vai ser.

No início da década de 2010, a senhora viralizou por ter declarado que odiava a classe média. A senhora ainda a odeia?
Ah, sim, com todas as minhas forças. Eu odeio a classe média até o fim dos meus dias.

Por que é que eu odeio a classe média? A sociedade capitalista tem duas classes fundamentais: a classe trabalhadora, que produz a mais-valia, e a burguesia. O trabalho da burguesia é explorar o trabalhador, porque uma parte do trabalho dele não é paga e vira capital.

O lugar, o papel, o significado, a relação dessas duas classes são claríssimos. Entre elas, tem uma terceira, que não tem lugar econômico porque não está nem na classe trabalhadora nem na classe burguesa. E a função da classe média é ideológica: espalhar as ideias da burguesia, da classe dominante.

Como a classe média não sabe muito bem onde está, ela fica insegura. Ela tem um sonho e um pesadelo. O sonho é se tornar burguesa. Pensa que se tiver um apartamento com dez suítes, churrasqueira na varanda, não sei o que mais, está já próxima disso. Mas ela não está.

Enquanto não receber a mais-valia, ela não entra na burguesia. Ela pode ficar rica, mas burguesa ela não é. E por isso ela tem um pesadelo, que é cair na classe dominada, na classe trabalhadora.

Então, a classe média funciona oprimindo os dominados e festejando e bajulando os dominantes. Por isso ela é odiosa. Ela é o cimento ideológico que garante que essa sociedade fique como está. É isso que acho odioso nela: não perceber que essa sociedade como está não pode ser.

Não é curioso que um dos índices do sucesso dos dois primeiros governos Lula tenha sido nomeado como ascensão de uma nova classe média, a mesma que depois se voltou contra o PT a partir do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff?
Não é isso. Eu contestei a Dilma sobre a ideia de que tinha crescido a classe média. Não cresceu. Vou começar do começo.

Em 1968, eu ganhei uma bolsa de estudos e fui para a França, onde os trabalhadores tinham automóvel, filhos nas escolas ou já nas universidades e férias no Mediterrâneo. E eu comparava essa classe média social-democrata com o que acontecia no Brasil.

Aqui a classe trabalhadora não virou classe média. O que aconteceu é que nós tivemos políticas sociais que fizeram com que melhorasse a condição da classe trabalhadora. O elemento que serve para avaliar a classe média é o consumo. E, com os direitos sociais, o consumo da classe trabalhadora aumentou e variou. Mas, como classe, ela ficou lá.

E como a senhora explica que parcelas das pessoas que tiveram os seus direitos ampliados durante um governo de esquerda tenham se voltado contra ele?
Não sei. Isso para mim é um mistério. Por um lado, eu me pergunto em que nós da esquerda falhamos. Alguma besteira nós fizemos para perder isso.

A política mais adequada no mundo neoliberal é a política individualista. E acho que nós da esquerda não levamos em conta o tamanho dessa transformação econômica e quais análises teríamos que fazer e que ações teríamos que propor.

A extrema direita é a política que o neoliberalismo pede. Ela é contemporânea, ela se atualizou.

A esquerda não se atualizou?
A esquerda não fez isso. Nós ainda não acertamos o passo da reflexão e da ação. Nós estamos um pouco antiquados. E corremos o risco, o que me deixa desesperada, de os movimentos identitários nos fragmentarem em vez de nos unirem.

A grande contradição da nossa sociedade continua a ser entre classe trabalhadora e classe burguesa, ou seja, a produção da mais-valia. Você só tem capital se tiver trabalho não pago. O que acontece é que nós não conseguimos ainda localizar onde, como e por que.

A senhora está lançando o livro "Filosofia, Um Modo de Vida". O que é tomar a filosofia como um modo de vida?
Quando você faz ciência no laboratório ou no seu centro de pesquisa e tal, depois vai para casa e tem sua vida. O caso da filosofia é muito peculiar, é uma relação ininterrupta com o mundo, seja uma relação de interrogação, seja uma relação de reconhecimento e identificação, seja uma relação de busca e de procura, mas ela está sempre com você.

Você não pode chegar em casa e dizer: "Cheguei em casa, e a filosofia acabou". Ela é uma maneira de você ver as coisas, de perguntar, de você responder, de se relacionar com o outro e de estar no mundo. Por isso ela é uma maneira de viver. É diferente da maioria das profissões, nas quais você pode fechar o expediente. No caso da filosofia, você não fecha o expediente nunca.

No livro, a senhora cita o filósofo Spinoza ao tratar da separação entre natureza e cultura e de sua reaproximação, ao tornar a natureza matéria-prima. Como o pensamento de Spinoza sobre a natureza pode informar o nosso cenário atual de crise ambiental e climática?
Ah, totalmente. Quando Spinoza diz "Deus é a natureza", o que ele diz é: Deus é uma substância absolutamente infinita e é constituído de infinitas qualidades, infinitos atributos.

Destes, nós conhecemos dois: o pensamento e a extensão. Pelo nosso corpo, nós somos uma expressão da extensão divina; pela nossa mente, somos uma expressão do pensamento divino. Cada um de nós é uma expressão singular de Deus.

Então, Deus é a natureza. E nós, nela. Nós com ela. De um ponto de vista spinozano, o que se está fazendo com a natureza é um crime absoluto porque você está destroçando expressões divinas. Ao fazer isso com a natureza, você está fazendo isso com você e com todos os outros.

O livro trata do conceito filosófico de servidão voluntária, criado pelo francês Étienne de la Boétie no século 16. De que maneira ele permite uma leitura do Brasil?
O La Boétie diz que a natureza nos fez livres. E a pergunta é: por que nós destroçamos essa liberdade? Ele diz que isso acontece no momento em que, estabelecida a desigualdade social, alguns consideram que têm o direito de mandar e se tornam tiranos, aos quais todos obedecem. E a sociedade vai reproduzir esse esquema.

Ou seja, cada um, no lugar que ocupa, determina os que lhe estão abaixo, sobre os quais ele manda. Ele serve porque quer ser servido. Ele obedece porque quer ser obedecido. Então, a servidão é voluntária nesse sentido. Eu quero a servidão no sentido de que ela garante para mim o meu poder.

Eu penso que esse modelo cabe bem para o Brasil. Sérgio Buarque e alguns dos sociólogos do período dele estudaram muito uma figura da sociedade brasileira que é o mandonismo, na época preso à figura dos coronéis. O mandonismo é uma coisa que ficou no Brasil. Basta que você se considere superior, independente de ser ou não, para imediatamente considerar o outro inferior e mandar nele.

A relação de mando e obediência forma o tecido do nosso cotidiano. A sociedade se estrutura entre um que manda e outro que obedece em todos os setores. Não é só na vida econômica, é na vida social, é na vida política, é na vida intelectual, em todo lugar.

Um amigo norte-americano gosta de dizer que quando dois brasileiros brigam, chega um instante em que um fala para o outro: "Você sabe com quem está falando?". E quando os americanos brigam, um diz para o outro: "Quem você pensa que é?". A nossa dinâmica imediatamente hierarquiza, e a outra imediatamente equaliza.

A senhora foi recentemente homenageada como uma docente negra da USP e disse que se autodeclara parda. Quando se reconheceu como tal?
Olha, foram os movimentos antirracistas e de cultura negra que abriram meus olhos. Nunca tinha percebido, porque em casa nunca foi assunto. Eu me dei conta olhando as fotos dos meus bisavós: "Mas eles são negros!". E a foto dos meus bisavós árabes: "Eles são brancos!". Então, o que eu sou? Mas sem os movimentos sociais, nunca teria pensado nisso.

Recentemente a senhora escreveu um artigo em defesa do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, refutando as acusações que ele sofreu de assédio sexual. Ele mesmo, em artigo de 2023, disse reconhecer que pode ter tido "comportamentos inapropriados". Trata-se de uma questão semântica? Quando um comportamento inapropriado vira assédio?
Não faço ideia. E vou dar um exemplo. Em 1972, fui dar aula em Stanford, nos EUA, e, num dado instante, eu estava saindo da sala da diretoria com duas professoras. Aí um professor abriu a porta para nós. A professora fez um escândalo. Disse que aquilo era assédio sexual, que ele estava propondo o coito…

Eu caí das minhas tamancas. Então, eu me pergunto: o que é que se determinou como comportamento inapropriado? Para aquele grupo de Stanford, um homem abrir a porta para uma mulher era assédio sexual. Então, acho que as fronteiras da vida cotidiana e dos hábitos milenares precisam ser discutidos. Não há uma discussão a esse respeito. O que há é uma acusação.

E a minha dificuldade em lidar com as acusações é esta: você não tem um esclarecimento do proibido e do permitido, do aceitável e do inaceitável. A punição vem antes que você saiba qual é o crime. Então isso me deixa muito aflita.

Tive uma relação sempre de amizade profunda com Boaventura em muitas ocasiões e jamais poderia ter qualquer dúvida a respeito do comportamento dele comigo. Eu vi dois amigos meus serem destruídos e um colega meu de Córdoba, na Argentina, quase se matar porque alunas fizeram acusações contra eles.

Eu sempre acho que é preciso proteger os movimentos, mas é preciso ter cautela no momento da acusação. Você pode destruir uma pessoa que talvez tenha tido um gesto que não podia ter tido. Mas a acusação é de um grau de violência que eu ainda não concordo. É o tal do cancelamento. Eu acho que é um assassinato.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Livros de memórias de Gay Talese, Annie Ernaux e Ernesto Mané são lançados, FSP

 Escrever um livro usando a inteligência artificial ainda parece um pouco absurdo. Mas cem anos atrás, escrever no computador era uma ideia impensável. E o que dizer de milhares de anos atrás, quando papiro e tinta, argila, carvão e madeira faziam as vezes de papel e caneta.

O meio como se escreve molda o que é escrito. E, como aponta o professor Rodrigo Tavares, sempre houve gente que via ameaça na mudança. Hoje, a desconfiança e hostilidade dos escritores e leitores é dirigida à IA. É um instrumento que faz repensar a autoria e a credibilidade do sujeito criativo.

Ocorreu uma espécie de inversão de papéis. Se antes a IA buscava parecer humana, agora é o humano que foge de parecer a IA. Termos e estruturas frequentemente usados pelo ChatGPT, como os travessões, passaram a ser evitados.

Nesse radar que opõe o artificial ao autêntico, pessoas passam a acusar umas às outras de usar uma ferramenta que se disfarça cada vez melhor. Basta ver a polêmica recente envolvendo o prêmio Candango de Literatura.

reportagem de Lara Paiva conta que ilustradores acusaram a premiação de indicar capas de livros criadas com inteligência artificial pela editora Mondru, que rebate afirmando que as imagens são colagens digitais. A IA era vetada nas regras da competição. E a casa afirma que irá processar seus acusadores por difamação.


Acabou de Chegar

Três capas de livros alinhadas horizontalmente. A primeira capa, cinza, tem o título 'Gay Talese' em vermelho e 'Bartleby e' em verde, com texto adicional em preto. A segunda capa apresenta uma foto em tons roxos e amarelos com o título 'Memória de Menina' em letras pretas e vermelhas, e o nome 'Annie Ernaux' em verde e amarelo. A terceira capa é marrom com linhas brancas sinuosas e o título 'ernesto mané antes do início' em branco.
'Bartleby e Eu', 'Memória de Menina' e 'Antes do Início' são os lançamentos destacados pela Tudo a Ler nesta semana - Editoria de Arte

"Bartleby e Eu" (trad. Laura Teixeira Motta, Companhia das Letras, R$ 99,90, 336 págs.) é uma obra autobiográfica do jornalista americano Gay Talese sobre o início de sua carreira. Um dos repórteres mais admirados do mundo, ele escreve sobre os bastidores de seus textos mais famosos, como o perfil de Frank Sinatra para o qual não entrevistou o cantor. A última seção do livro narra uma reportagem de 2006 que, segundo Ivan Finotti, parece deslocada em meio a uma obra marcada pelo jornalismo dos anos 1950 e 1960.

"Memória de Menina" (trad. Mariana Delfini, Fósforo, R$ 69,90, 144 págs.) é um livro que a francesa Annie Ernaux afirma ter adiado por 50 anos. A vencedora do Nobel de Literatura retorna a uma juventude marcada por desejo e violência. "Não estou construindo uma personagem de ficção. Estou desconstruindo a menina que fui", escreve Ernaux. A obra, como aponta a crítica Carolina Ferreira, "leva a pensar sobre que corpo é forjado a partir de uma escrita de si."

"Antes do Início" (Tinta-da-China Brasil, R$ 89,90, 256 págs.) marca a estreia do físico Ernesto Mané na literatura. Durante seu pós-doutorado, o autor percebeu que entendia muito sobre o mundo, da mecânica quântica à física nuclear, mas que pouco de sua história e de sua família. No livro, ele conta como tentou superar essa lacuna buscando seus antepassados, donos de uma história complexa e dolorosa espalhada por três continentes, como conta o repórter Reinaldo José Lopes.


E mais

Saiu nesta terça a lista dos finalistas do Jabuti e, entre as mais de cem indicações, chama a atenção a predominância de autores homens. A categoria de romance literário, por exemplo, é disputada por Alberto Mussa, Chico Buarque, Jeferson Tenório, Marcelino Freire e Tony Bellotto. O contraste é grande em comparação aos finalistas ao Prêmio São Paulo de Literatura, no qual 13 mulheres concorrem entre os 20 indicados a melhor romance e melhor romance de estreia.

Estatueta do Prêmio Jabuti - KR/CBL/Divulgação

Na última sexta, Taylor Swift lançou seu 12° álbum, dando início a uma nova era de sua carreira. Como explica a biógrafa da cantora, Caroline Sullivan, Taylor é diferente de qualquer artista porque tudo o que faz é moldado pela maneira como sua mudança será recebida pelo público. Com "The Life of a Showgirl", a cantora americana dá início a sua "era do sexo".

O Ministério Público do Rio de Janeiro moveu uma ação civil contra o município e o atual proprietário do sobrado onde o escritor Machado de Assis morou de 1869 a 1871. O órgão exige medidas para conter a degradação da casa tombada desde 2008, no centenário da morte do escritor. Localizado na rua dos Andradas, 147, o imóvel está descaracterizado e em péssimo estado de conservação, segundo relata a reportagem de Cristina Camargo.


Além dos Livros

Este ano já viu as primeiras edições de vários festivais literários em diversas regiões do Brasil. Só neste mês de outubro estreiam a Festa Literária Internacional Capixaba, em Vila Velha, e a Festa Literária Internacional de Niterói. A proliferação desse tipo de evento, como aponta o Painel das Letras, estimula o contato de jovens com livros impressos e alimenta a crescente demanda do público por autores brasileiros.

A Bienal do Livro do Paraná, no entanto, enfrenta dificuldades para compor esse ciclo de novos festivais. O evento que deveria acontecer a partir desta semana foi adiado sem previsão. A empresa responsável, a Cocar Produções, culpa "motivos operacionais, logísticos e também as condições climáticas dos últimos dias". A repórter Catarina Scortecci aponta que a Bienal não conseguiu pagar o aluguel do espaço onde seria realizada e viu autores como Pedro Bial e Thalita Rebouças cancelarem suas participações.


Depois de quatro anos quase completos na presidência da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira se manterá no cargo por mais um ano devido a uma mudança de regra. Embora o estatuto original da ABL não estipule limite para a permanência do presidente, a norma vigente dizia que um imortal podia ficar na presidência por, no máximo, quatro anos consecutivos. Uma comissão interna propôs e aprovou a extensão para cinco anos, beneficiando Merval. O jornalista disse à Folha que a ABL "é uma instituição privada que decide as suas necessidades e sua maneira de funcionar".

Reservas de ouro de Portugal não vieram do Brasil, mas dos nazistas, Rodrigo Tavares , FSP

 Três fatos nos deixam atônitos. Um: esta semana o ouro ultrapassou, pela primeira vez, a barreira de 4 mil dólares por onça, o que representa um novo recorde absoluto, resultado da incerteza geopolítica e econômica. O preço subiu mais de 50% desde 1º de janeiro.

Dois: Portugal está entre os países com maiores reservas de ouro per capita do mundo (383 toneladas), avaliadas em 40 bilhões de euros, o valor mais alto já registrado pelo Banco de Portugal. Três: Entre 1720 e 1807, Portugal extraiu do Brasil 557 toneladas de ouro, o equivalente a 58 bilhões de euros em valores atuais. Foi uma das maiores transferências forçadas de riqueza da história moderna.

Seis barras de ouro empilhadas em duas camadas sobre superfície refletiva preta. Cada barra tem a marcação '999.9' indicando pureza e um número de série gravado na superfície.
Barras de ouro - David Gray/AFP

À primeira leitura, os três fatos parecem formar uma cadeia causal: o ouro levado do Brasil continua alimentando a economia portuguesa. Mas é uma inferência falaciosa. O ouro guardado a sete chaves pelo Banco de Portugal –em Londres e em uma instalação de alta segurança na vila do Carregado, a 40 quilômetros de Lisboa– tem origem nazista. É um dos mais "sombrios episódios da história portuguesa moderna", afirmou em 2011 o historiador Neill Lochery, autor de "Lisboa: A Guerra nas Sombras da Cidade da Luz, 1939-1945."

Durante a Segunda Guerra Mundial, Portugal manteve uma posição oficialmente neutra, mas tornou-se um dos principais intermediários financeiros da Europa. Entre 1939 e 1945, o país vendeu grandes quantidades de volfrâmio —minério estratégico para a indústria bélica— à Alemanha nazista. Além dos tradicionais vinho, azeite e conservas. Em contrapartida, recebeu pagamentos em ouro. Parte significativa desse metal foi pilhado aos bancos centrais dos países ocupados pelos nazistas, como a Bélgica, Países Baixos e Tchecoslováquia.

Escreveu a historiadora portuguesa Irene Pimentel no seu livro "Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial": "De acordo com documentos descobertos pelo World Jewish Congress, 127 toneladas de ouro "alemão" passaram pelo Banco Nacional Suíço a caminho de Portugal, que assim conseguiu aumentar as suas reservas de ouro em quase 600%."

A quantidade exata de ouro oriundo da Alemanha é incerta, o que reforça a sua origem controversa. Outras fontes apontam que foram 42124, ou 228 toneladas. O único consenso diz respeito ao volume oficial das reservas de ouro portuguesas: antes da guerra, 63 toneladas; após o conflito, 357 toneladas. A acumulação tornou-se o pilar econômico do Estado Novo, permitindo a Salazar manter uma imagem de solvência num país pobre.

Um documentário da RTP, a televisão pública portuguesa, exibido em 1997 e baseado numa investigação de historiadores nacionais, descreve com clareza o esquema.

Em 1939, Hitler foi informado pelo Banco Central da Alemanha de que o país já não dispunha de reservas de ouro ou divisas. Montou-se então uma operação de grande escala para que o regime nazista se apropriasse do ouro pertencente aos países ocupados. Uma vez em mãos alemãs, bancos suíços encarregavam-se de lavá-lo, integrando-o no circuito financeiro internacional. Parte significativa desse ouro chegou a Portugal, com a cumplicidade do governo de Salazar. Espiões britânicos e norte-americanos em Lisboa detectaram o esquema e alertaram as autoridades de que as transações teriam de cessar. Datas, nomes, documentos e valores constam do documentário, disponível nos arquivos digitais da RTP.

Com o fim da Segunda Guerra, a maioria dos países foi obrigada a devolver quase todos os ganhos obtidos nas trocas comerciais com a Alemanha. Portugal restituiu apenas 4 toneladas (identificadas como tendo origem nos Países Baixos), possivelmente porque os EUA decidiram fechar os olhos enquanto negociavam a utilização de uma base militar no arquipélago dos Açores, ainda hoje operacional.

Nos anos 1990, escalou a pressão internacional sobre o Banco de Portugal.

Historiadores e economistas judeus e o Congresso Mundial Judaico começaram a questionar a origem de parte das reservas de ouro portuguesas. Em 1998, foi então criada uma comissão para investigar as transações de ouro efetuadas entre as autoridades portuguesas e alemãs no período de 1936 a 1945, presidida pelo ex-presidente da República Mário Soares. O relatório final concluiu que "a investigação efetuada não permitiu encontrar bases que aconselhem o pagamento de qualquer compensação adicional". Isto porque Portugal recebeu o ouro "de boa fé, como resultado de transações legítimas feitas com o conhecimento e consentimento dos Aliados." Nesse período, quando um porta-voz do Banco foi questionado pela revista americana Newsweek se o ouro era dos judeus, respondeu: "Como poderíamos perguntar? Ouro não tem raça".

É verdade. Mas história certamente tem.