quarta-feira, 4 de junho de 2025

Ruy Castro - Silêncio mesquinho, FSP

 No dia 1º, completou-se um mês da morte de Nana Caymmi. Lula, rápido no gatilho para homenagens aos grandes brasileiros que nos deixam, ficou mudo a respeito dela e assim continuou por esses 30 dias. Não se pode exigir de um presidente que conheça ou goste de todas as pessoas de valor do país. Para isso, é instruído por assessores, que, inclusive, escrevem os textos que ele dedica aos falecidos.

Lula ficou em silêncio sobre Nana Caymmi porque em entrevista à Folha, em 2019, ela pareceu solidária ao recém-esfaqueado Bolsonaro, fez declarações ásperas contra o PMDB e o PT e classificou Caetano VelosoGilberto Gil e outros de "chupadores do pau do Lula". Só a grossura desta última frase já devia ser vista com bom humor por Lula, ele próprio um desbocado em off. Mas seus assessores a tomaram por uma declaração de guerra. E nem a morte de Nana fez com que a grandeza da arte se impusesse sobre a mesquinhez da política.

Durante o governo Bolsonaro, morreram, entre muitos, Beth Carvalho, Bibi Ferreira, João Gilberto, Domingos Oliveira, Nelson Freire, Paulo José, Jô Soares, Milton Gonçalves, Elza Soares. Sem esquecer o suicídio de Flavio Migliaccio, farto da humanidade e do país. Nenhum deles mereceu um pio de Bolsonaro. E não seria pelos mortos em consequência da Covid —Aldir Blanc, Nicette Bruno, Carlos Lessa, Daniel Azulay, Paulo Gustavo, Nelson Sargento, Sergio Sant’Anna, muitos mais— que ele verteria uma lágrima. Afinal, "não era coveiro".

A querida Nana não sabia nada de política. Na entrevista à Folha, falou 89 palavrões em 71 minutos. Absurdos vinham-lhe à boca a todo momento, sobre qualquer assunto; ela os falava e se dissipavam em segundos. Só os seus discos eram definitivos —o que ela sabia de cantar lhe bastava e nos bastava. Gilberto Gil, seu ex-marido, e Caetano não se ofenderam com a frase. Ao contrário, choraram sua morte. Ao imitar Bolsonaro, Lula rebaixou-se a ele.

A própria Nana não se ofenderia com o silêncio de Lula. Mais provável é que desse uma risada e lhe dedicasse alguns de seus pândegos e trovejantes palavrões.

A imagem mostra uma mulher cantando em um microfone, com uma expressão intensa e emocional. Ela está vestida com um vestido brilhante e possui o cabelo preso em um coque. A iluminação é suave, destacando sua figura contra um fundo escuro.
Nana Caymmi em show em 1966 - Agência O Globo

terça-feira, 3 de junho de 2025

Ministério Público investiga Cacau Show por suspeita de más condições de trabalho, FSP

 Alex Sabino

São Paulo

O Ministério Público do Trabalho de São Paulo abriu inquérito para investigar denúncias recebidas contra a Cacau Show. A assessoria do órgão informa que o procedimento está em fase de apuração e não há processo judicial aberto.

As denúncias foram apresentadas no último dia 16 e estão com a procuradora Patricia Mauad Patruni Isotton, em Itapevi, na Grande São Paulo. Ela afirma, em e-mail obtido pela Folha, planejar uma audiência para as próximas semanas.

Uma pessoa está segurando uma caixa de papelão com doces coloridos, enquanto escolhe entre uma variedade de doces dispostos em recipientes transparentes. Os doces são de diferentes cores, incluindo rosa, azul e marrom, e estão organizados em pilhas ao fundo da imagem.
Loja da Cacau Show em São Paulo durante a Páscoa deste ano - Bruno Santos -16.abr.2025/Folhapress

A denúncia foi enviada pela Associação União de Franqueados, que representa donos de lojas da Cacau Show. A entidade coletou depoimentos de funcionários e ex-funcionários da indústria da Cacau Show e do resort Bendito Cacao, em Campos do Jordão, no interior de São Paulo. Na lista de denúncias estão condições precárias de trabalho, assédio, homofobia, jornadas exaustivas e pressão para participação de rituais.

A procuradora recebeu também cópias dos livros "A Doce Amargura", que contam experiências de franqueados da Cacau Show. A trilogia foi escrita por Náira Alvim Passionoto, ex-dona de loja da franquia, sob o pseudônimo de Helena do Prado.

Procurada, a Cacau Show disse não medir "esforços para ouvir e resolver qualquer ponto relatado por franqueados, colaboradores, parceiros e consumidores".

"Contamos com um canal de denúncia gerido por empresa independente, que garante anonimato e imparcialidade. As denúncias são rigorosamente apuradas e resultam em medidas cabíveis sempre que necessário. Reforçamos nosso compromisso de continuar investigando todos os casos com seriedade, para assegurar um ambiente ético, respeitoso e transparente", afirmou a empresa em nota.

Como a Folha publicou no último sábado (31), franqueados e ex-franqueados da rede fazem uma série de críticas à rede, de taxas consideradas abusivas, ameaças veladas ou diretas recebidas de consultores da empresa, multas teoricamente inexplicáveis e culto à personalidade do fundador da empresa e CEO, Alexandre Costa.

Todas as acusações são consideradas falsas pela Cacau Show, que tem mais de 4.600 unidades no país, segundo a ABF (Associação Brasileira de Franchising).

Nesta segunda-feira (2), a empresa enviou mensagem aos franqueados e ao time de vendas, mas sem abordar as reclamações apresentadas. Disse apenas que os conteúdos divulgados "não representam o que somos".

"Quero deixar claro que rejeitamos veementemente qualquer afirmação ou acusação que vá contra os valores que sempre nos guiaram", afirma o texto assinado por Alexandre Costa.

No mesmo dia, Náira, a Helena do Prado, recebeu comunicado da Cacau Show rescindindo o contrato de sua loja em Rancharia, no interior de São Paulo. A empresa disse que a tentativa de venda do estabelecimento não deu certo e que não há mais interesse "na continuidade da relação estabelecida no contrato de franquia". A unidade foi fechada.


RAIO-X | Cacau Show

Fundação: 1988, na Casa Verde, zona norte de São Paulo

Lojas: 4.661; 4.287 franqueadas e 374 próprias; grupo também tem hotéis e parque de diversão

Revendedores: 81,5 mil

Produção: capacidade para 30 mil toneladas ao ano

Faturamento: R$ 5,3 bilhões em 2023

Principais concorrentes: Kopenhagen, Lindt, Dengo e Brasil Cacau

Ao combater identitarismo, Trump atinge a liberdade acadêmica e o dissenso, Wilson Gomes - FSP

 No confronto entre Donald Trump e Harvard não há escolha difícil para quem leva a sério os valores da democracia liberal. Fora os trumpistas e a extrema direita mundial —que já é gente à beça—, qualquer pessoa esclarecida reconhece que a investida atinge em cheio a liberdade de expressão, o pluralismo político e ideológico, o pensamento crítico e a autolimitação do poder, inclusive moral.

No entanto, a leitura "a barbárie ataca, o esclarecimento se defende" é simplória demais. A operação em curso não é apenas mais um episódio da série "a elite contra-ataca". Trata-se, antes, do ensaio de algo que, se ou quando a extrema direita voltar ao poder no Brasil, acontecerá aqui com método, apoio popular e espírito de revanche.

Harvard é uma instituição central da elite americana e símbolo da autoridade moral de um modelo de sociedade cosmopolita, multicultural e progressista. Representa uma elite que, além de se autolegitimar moralmente, reivindica o direito de estabelecer o que pode ou não ser dito, escrito e ensinado no espaço público. Para o populismo trumpista, Harvard não é apenas uma universidade: é o núcleo simbólico de um projeto ideológico hegemônico que precisa ser desacreditado —e, se possível, neutralizado.

Mas Trump não arriscaria um enfrentamento tão extremo se não tivesse as costas quentes. Uma parcela expressiva da opinião pública americana compartilha a percepção de que as universidades foram capturadas por militantes progressistas e transformadas em bastiões de ortodoxia ideológica. Esse sentimento não é novo, mas ganhou força nas últimas duas décadas, impulsionado por três movimentos principais.

Primeiro, a politização crescente do ambiente universitário, em que professores e alunos são, antes de tudo, militantes de agendas políticas e morais. Segundo, a homogeneização ideológica de departamentos e cursos, com espaço cada vez mais reduzido para vozes dissonantes ou posições não alinhadas ao progressismo. Terceiro, a adoção de critérios morais —e não de mérito acadêmico— na contratação de docentes, seleção de alunos e definição de currículos, o que tende a excluir quem não compartilha integralmente dos valores identitários em vigor.

Diante de um fundo levemente desfocado, formado pelas estrelas difusas da bandeira americana, ergue-se um grande alvo de madeira, marcado por círculos concêntricos vermelhos e brancos, com várias facas de lâminas douradas cravadas perigosamente no alvo de madeira. Uma das facas acerta em cheio a beca do estudante. Nele, amarrado de braços e pernas abertos, está um jovem formando da Universidade de Harvard. Mesmo girando indefeso no eixo do número circense, ele encara o perigo com desafio: uma mão ocupa o lugar da cabeça e, erguendo o dedo médio, ele o dirige a quem lança as facas. Na mão direita, segura com firmeza o diploma enrolado; na esquerda, uma flâmula triangular tremula com o emblema da Universidade, onde se lê, em silabação provocadora: Ve-RI-Tas — “verdade”, a palavra Harvard e a data de sua fundação, ano de 1.636.
Ariel Severino/Folhapress

Hoje, conservadores no meio universitário relatam censura informal, silenciamento e punições simbólicas. Departamentos impõem conteúdos e linguagens com forte carga normativa, sob justificativas como "educação antirracista" ou "formação de cidadãos críticos". Críticas ponderadas a esse estado de coisas são frequentemente ignoradas ou rotuladas como reacionárias, colonialistas ou transfóbicas. É esse campo minado que Trump explora com cálculo e maestria.

Sua ofensiva contra Harvard tem valor estratégico: não visa destruir as universidades, mas, supostamente, impedir que sigam atuando como reprodutoras de um padrão ideológico hegemônico. Para seus apoiadores, Trump não ataca a ciência ou o ensino —ao contrário, põe finalmente um freio à "insanidade ideológica woke", cortando o financiamento público que a sustenta.

Esse ataque, contudo, não corrige o desvio —apenas inverte a direção do mesmo erro. O trumpismo enfrenta o autoritarismo identitário com mais autoritarismo, adotando os mesmos métodos e pressupostos. Ambos os lados recorrem à censura e à punição moral sumária, fazendo da etiquetagem o principal instrumento de exclusão política. Os identitários rotulam seus críticos como racistas, transfóbicos, misóginos ou colonialistas; os trumpistas, por sua vez, classificam-nos como terroristas, antiamericanos ou antissemitas. Em ambos os casos, a acusação funciona como sentença —não como hipótese.

A liberdade de expressão, para ambos os campos, só vale para quem professa a fé correta. Os identitários a restringem em nome da segurança emocional e da proteção de subjetividades vulneráveis; os trumpistas, em nome da segurança nacional ou dos valores americanos.

Trump pode até mirar no identitarismo, mas o que atinge, de fato, são a autonomia universitária, a liberdade de cátedra, o dissenso legítimo e a independência política dos indivíduos. O trumpismo não pretende reconstruir nem pluralizar: quer retaliar. E, nesse aspecto, não difere essencialmente daquilo que condena.

Essa guerra cultural travada entre doutrinas iliberais tem uma única vítima real: a democracia liberal. Perdem o debate racional, o convívio com a diferença e o esforço coletivo por uma esfera pública aberta. Ganham apenas os que vivem de alimentar o conflito —e que precisam, a qualquer custo, que ele nunca termine.