terça-feira, 3 de junho de 2025

Ao combater identitarismo, Trump atinge a liberdade acadêmica e o dissenso, Wilson Gomes - FSP

 No confronto entre Donald Trump e Harvard não há escolha difícil para quem leva a sério os valores da democracia liberal. Fora os trumpistas e a extrema direita mundial —que já é gente à beça—, qualquer pessoa esclarecida reconhece que a investida atinge em cheio a liberdade de expressão, o pluralismo político e ideológico, o pensamento crítico e a autolimitação do poder, inclusive moral.

No entanto, a leitura "a barbárie ataca, o esclarecimento se defende" é simplória demais. A operação em curso não é apenas mais um episódio da série "a elite contra-ataca". Trata-se, antes, do ensaio de algo que, se ou quando a extrema direita voltar ao poder no Brasil, acontecerá aqui com método, apoio popular e espírito de revanche.

Harvard é uma instituição central da elite americana e símbolo da autoridade moral de um modelo de sociedade cosmopolita, multicultural e progressista. Representa uma elite que, além de se autolegitimar moralmente, reivindica o direito de estabelecer o que pode ou não ser dito, escrito e ensinado no espaço público. Para o populismo trumpista, Harvard não é apenas uma universidade: é o núcleo simbólico de um projeto ideológico hegemônico que precisa ser desacreditado —e, se possível, neutralizado.

Mas Trump não arriscaria um enfrentamento tão extremo se não tivesse as costas quentes. Uma parcela expressiva da opinião pública americana compartilha a percepção de que as universidades foram capturadas por militantes progressistas e transformadas em bastiões de ortodoxia ideológica. Esse sentimento não é novo, mas ganhou força nas últimas duas décadas, impulsionado por três movimentos principais.

Primeiro, a politização crescente do ambiente universitário, em que professores e alunos são, antes de tudo, militantes de agendas políticas e morais. Segundo, a homogeneização ideológica de departamentos e cursos, com espaço cada vez mais reduzido para vozes dissonantes ou posições não alinhadas ao progressismo. Terceiro, a adoção de critérios morais —e não de mérito acadêmico— na contratação de docentes, seleção de alunos e definição de currículos, o que tende a excluir quem não compartilha integralmente dos valores identitários em vigor.

Diante de um fundo levemente desfocado, formado pelas estrelas difusas da bandeira americana, ergue-se um grande alvo de madeira, marcado por círculos concêntricos vermelhos e brancos, com várias facas de lâminas douradas cravadas perigosamente no alvo de madeira. Uma das facas acerta em cheio a beca do estudante. Nele, amarrado de braços e pernas abertos, está um jovem formando da Universidade de Harvard. Mesmo girando indefeso no eixo do número circense, ele encara o perigo com desafio: uma mão ocupa o lugar da cabeça e, erguendo o dedo médio, ele o dirige a quem lança as facas. Na mão direita, segura com firmeza o diploma enrolado; na esquerda, uma flâmula triangular tremula com o emblema da Universidade, onde se lê, em silabação provocadora: Ve-RI-Tas — “verdade”, a palavra Harvard e a data de sua fundação, ano de 1.636.
Ariel Severino/Folhapress

Hoje, conservadores no meio universitário relatam censura informal, silenciamento e punições simbólicas. Departamentos impõem conteúdos e linguagens com forte carga normativa, sob justificativas como "educação antirracista" ou "formação de cidadãos críticos". Críticas ponderadas a esse estado de coisas são frequentemente ignoradas ou rotuladas como reacionárias, colonialistas ou transfóbicas. É esse campo minado que Trump explora com cálculo e maestria.

Sua ofensiva contra Harvard tem valor estratégico: não visa destruir as universidades, mas, supostamente, impedir que sigam atuando como reprodutoras de um padrão ideológico hegemônico. Para seus apoiadores, Trump não ataca a ciência ou o ensino —ao contrário, põe finalmente um freio à "insanidade ideológica woke", cortando o financiamento público que a sustenta.

Esse ataque, contudo, não corrige o desvio —apenas inverte a direção do mesmo erro. O trumpismo enfrenta o autoritarismo identitário com mais autoritarismo, adotando os mesmos métodos e pressupostos. Ambos os lados recorrem à censura e à punição moral sumária, fazendo da etiquetagem o principal instrumento de exclusão política. Os identitários rotulam seus críticos como racistas, transfóbicos, misóginos ou colonialistas; os trumpistas, por sua vez, classificam-nos como terroristas, antiamericanos ou antissemitas. Em ambos os casos, a acusação funciona como sentença —não como hipótese.

A liberdade de expressão, para ambos os campos, só vale para quem professa a fé correta. Os identitários a restringem em nome da segurança emocional e da proteção de subjetividades vulneráveis; os trumpistas, em nome da segurança nacional ou dos valores americanos.

Trump pode até mirar no identitarismo, mas o que atinge, de fato, são a autonomia universitária, a liberdade de cátedra, o dissenso legítimo e a independência política dos indivíduos. O trumpismo não pretende reconstruir nem pluralizar: quer retaliar. E, nesse aspecto, não difere essencialmente daquilo que condena.

Essa guerra cultural travada entre doutrinas iliberais tem uma única vítima real: a democracia liberal. Perdem o debate racional, o convívio com a diferença e o esforço coletivo por uma esfera pública aberta. Ganham apenas os que vivem de alimentar o conflito —e que precisam, a qualquer custo, que ele nunca termine.

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