quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Sérgio Rodrigues - Bet foi do crime pequeno ao imenso, FSP

 A notícia mais triste do ano —e isso é dizer muito, muitíssimo, enquanto o país pega fogo e Pablo Marçal ameaça se eleger prefeito de São Paulo— estava nesta quarta (25) na capa da Folha e de todos os jornais que ainda acreditam no papel social da informação.

Todo mundo viu, mas vale repetir: um quinto do total dos benefícios pagos pelo programa Bolsa Família em agosto, R$ 3 bilhões, foi gasto em apostas online. Estamos falando de gente que precisa desse dinheiro para atender necessidades básicas como, por exemplo, comer.

Manchete da Folha de 25.set.24
Manchete da Folha de 25.set.24 - Reprodução

O total apostado pela população em geral no período foi de R$ 20,8 bilhões —e, sim, o cálculo está assumidamente subestimado. Inclui apenas os valores pagos via Pix, deixando de fora as apostas feitas por cartão de crédito e TED.

Apostas? Convém traduzir para o inglês em nome da compreensão do conceito por um público mais amplo: bets, isso sim. Aquilo que responde hoje —ou ao menos dá essa impressão— pela totalidade do mercado publicitário nacional ou quase isso. Não fica mais charmoso assim?

É claro que fica. Se a tigela virou bowl —embora continue vazia na casa de milhões de apostadores infelizes— e o acanhado "para viagem" atende gloriosamente por "take away", entre outras harmonizações faciais operadas na língua portuguesa, já passava da hora de transformar aposta em bet.

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Além do prazer da rendição incondicional a um idioma mais rico, bonito e cheiroso, falado por verdadeiros winners, há a vantagem de evitar as conotações negativas que tinham se grudado ao longo do tempo no substantivo aposta, uma palavra definitivamente cringe.

Ligada na memória dos mais velhos à compulsão autodestrutiva, à ruína, à miséria, ao crime e à destruição de vidas e famílias —tudo, convenhamos, triste demais—, a aposta deixa o baixo-astral para trás ao se metamorfosear numa vibrante sílaba única que em nosso jeito de falar se desdobra em duas: bé-ti.

Contribui para isso o fato de que a origem da palavra está bem enterrada no século 16. Quem vai se lembrar que ela começou sua carreira como uma gíria nascida no submundo da marginalidade e dos pequenos crimes?

Dada como de origem incerta pelos etimologistas, especula-se que a bet possa ser derivada do verbo "abet", ou seja, instigar, atiçar, levar (um cão) a morder. Também não está descartado um parentesco com "bait", isca.

Dos pequenos crimes de bandidinhos de rua do tempo de Shakespeare aos crimes bilionários em escala global do século 21, a palavra cumpriu uma trajetória circular, mas vertiginosamente ascendente.

Bastou surfar a onda da revolução digital para atropelar regulações estatais —que de todo modo seriam hesitantes, seduzidas pela arrecadação bilionária aos cofres do Tesouro— e chegar a esse mundo novo sem lei que vemos agora da janela, quando a fumaça nos deixa ver alguma coisa.

Um mundo em que um programa social histórico como o Bolsa Família, construído com muito esforço e que ajudou a mudar a cara de um dos países mais desiguais do mundo, é feito de palhaço todo dia em horário nobre, com a ajuda de garotos-propaganda acima de qualquer suspeita. Um mundo em que o crime compensa.


A trava da Autoridade Climática, Elio Gaspari, FSP

 Numa passagem por Manaus no último dia 10, Lula anunciou que criará uma Autoridade Climática para cuidar das queimadas e dos incêndios. Boa notícia. Em 2022, depois do primeiro turno, essa ideia circulou na equipe que discutia os planos do novo governo. Passaram-se os meses e ela pegou fogo.

Contra a ideia agiram dois grupos, com interesses antagônicos. De um lado, os burocratas interessados em preservar o poder do Ministério do Meio Ambiente. De outro, os agrotrogloditas, interessados na teatralidade e na preservação da falta de coordenação do poder público.

Dois anos depois, a Autoridade Climática voltou ao baralho e, com ela, o velho conflito. Numa entrevista aos repórteres Jeniffer Gularte, Sérgio Roxo e Thiago Bronzatto, o ministro Rui Costa, da Casa Civil, deu algumas pistas para se entender como funciona a trava.

Lula, de terno azul escuro, gravata azul, camisa azul clara com colarinho branco, está sentado e gesticula e conversa com Marina Silva, que está de pé. Ela usa camisa de linho branca com cinto e colar indígena e saia bege. Está de pé se curva para falarcom o presidente.
O presidente Lula (PT) fala com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, em reunião no Palácio do Planalto - Ueslei Marcelino - 17.set.2024/Reuters

Quando lhe disseram que "o Ministério do Meio Ambiente enviou há alguns meses para a Casa Civil o modelo de funcionamento" da Autoridade Climática, ele perguntou: "Está aqui há meses? Onde obteve essa informação?"

"No Ministério do Meio Ambiente."

"Sabe que dia chegou o primeiro texto aqui? Ontem (quinta-feira). O que tinha sido apresentado há dois meses era um PowerPoint."

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Traduzindo: a ideia da criação da Autoridade Climática ficou mais de um ano no universo dos PowerPoint.

Rui Costa colocou a questão nos seus velhos termos. O Ministério do Meio Ambiente quer uma autarquia, dentro do seu quadrado de poder. A outra ideia, queimada em 2023, previa uma Autoridade vinculada à Presidência da República.

Esse dilema parece ser da família da discussão do que veio primeiro, o ovo ou a galinha. Sua chave está na transversalidade dos poderes da Autoridade Climática. Por exemplo: ela terá poderes para se meter em assuntos ligados ao Ministério da Agricultura? Ou ainda: a Autoridade Climática terá mais agilidade para reprimir os incêndios criminosos? Abundam as provas de que o último fogaréu foi deliberado e coordenado. Lula classificou-o como "oportunismo". É bem mais que isso. A Polícia Federal já abriu 85 inquéritos para investigar a origem desses crimes. (No século passado, um grupo de esquerda queimava canaviais no Nordeste.)

A trava que bloqueou a Autoridade Climática em 2023 é a mesma que alimenta as dúvidas de hoje. É um conflito de visões de pessoas interessadas na defesa do meio ambiente e na preservação de seu poder na burocracia, não necessariamente nessa ordem.

Argumentando contra a vinculação da Autoridade Climática à Presidência da República, a ministra Marina Silva elaborou:

"Eu fico pensando numa estrutura ligada ao gabinete do presidente da República... E se mudar o presidente, e o presidente não quiser essa estrutura ligada a ele?"

Tudo bem, se esse presidente fosse Jair Bolsonaro, nomearia Ricardo Salles para o Ministério do Meio Ambiente, para que a boiada passasse.

Para quem está cheirando fumaça nas cidades ou fugindo do fogo no campo, a situação é ridícula. Em fevereiro de 2023 Lula propôs a criação de uma "governança global" para a questão climática.

Bonitas palavras, de um presidente que consumiu dois anos e não definiu a governança de sua própria autoridade pessoal.