quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Climatologista Luciana Gatti é alvo de ataques do agro após críticas a Tarcísio, Revista Forum

 Climatologista reconhecida no combate aos efeitos da crise climática, a Dr. Luciana Gatti, atual Coordenadora do Laboratório de Gases de Efeito Estufa do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), tem sido alvo de ataques de setores do agronegócio que negam evidências sobre o desmatamento.

A onda de ataques ocorre após entrevista concedida por Luciana Gatti à GloboNews no dia 15 de setembro de 2024. Na ocasião, a pesquisadora alertou sobre o uso do fogo por produtores de cana-de-açúcar e os riscos desse procedimento para o meio ambiente, tendo criticado ainda a atuação do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), diante das queimadas no estado.

Reação do agronegócio 

Além da SAA-SP (Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo), outras duas entidades do setor sucroenergético se manifestaram contrárias às declarações da cientista.

O secretário e produtor rural, Guilherme Piai Filizzola, à frente da SAA, caracterizou como ‘nefasta e criminosa’ as declarações feitas por Gatti.

Em nota, a UNICA (União da Indústria de Cana-de-açúcar e Bioenergia) solicitou reunião em caráter de urgência com a ministra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Luciana Santos, alegando que Gatti teria imputado às usinas produtoras de açúcar e bioenergia “condutas criminosas”. A entidade também pediu o direito de resposta à GloboNews, que foi concedido e exibido no programa GloboNews Mais do dia 16.

Por sua vez, a ORPLANA (Organização de Associações de Produtores de Cana do Brasil) definiu como “falsas e infundadas” as declarações da cientista.

Evidências contradizem a posição de entidades

Apesar de as entidades terem repudiado as declarações da pesquisadora, estudos recentes respaldam as afirmações feitas pela cientista.

Embora reafirmem o compromisso do agronegócio com o meio ambiente, um relatório divulgado pelo MapBiomas em agosto deste ano aponta que o setor é atualmente o principal responsável pela perda de vegetação nativa no Brasil, tendo expandido sua área agrícola em 228% nos últimos 39 anos.

O mesmo estudo revelou que o Brasil chegou este ano à marca de 33% de perda de suas áreas nativas, com metade da perda total — cerca de 55 milhões de hectares — ocorrendo na Amazônia.

Sobre a origem dos focos de queimada, pesquisas recentes baseadas em imagens de satélite demonstram que mais de 90% delas são causadas por ação humana. A ministra Marina Silva caracterizou ações coordenadas de incêndios como “terrorismo climático”.

Entenda o caso

Em entrevista concedida à GloboNews no dia 15, Gatti criticou a proposta de Tarcísio de Freitas de indenizar proprietários de áreas atingidas por queimadas sem investigação prévia de possíveis responsáveis e vítimas. Segundo a pesquisadora, essa ação pode favorecer criminosos e desamparar pequenos produtores.

No entanto, a entrevista de Gatti foi interrompida devido a problemas técnicos, suspendendo rapidamente a chamada no instante em que a pesquisadora criticava Tarcísio de Freitas. Logo após restabelecer a conexão, a conversa foi redirecionada para outro tópico pela entrevistadora, sem dar condições para que Gatti prosseguisse a partir do ponto em que havia sido interrompida.

Moção de apoio e solidariedade 

Como resposta aos ataques sofridos pela cientista, a comunidade de acadêmicos e ambientalistas tem expressado apoio à pesquisadora por meio de manifestações públicas. Assinada por Antonio Donato NobreCarlos Nobre e Ricardo Galvão, uma moção pública foi criada em apoio e solidariedade à Dra. Luciana Gatti. 

Leia na íntegra: 

Na semana sucessiva ao dia 15 de setembro (2024), uma tempestade se desencadeou contra a Dra. Luciana Gatti.  O Secretário da Agricultura do Estado de São Paulo, Guilherme Piai, chegou a acusá-la de ter dado à imprensa declarações “nefastas e criminosas” a respeito dos  incêndios que estão devastando o país. Além disso, enviou um ofício à Ministra Luciana Santos, do MCTI,  pedindo explicações sobre tais declarações. 

Trata-se de uma acusação injuriosa e de uma clara tentativa de intimidação que não pode ficar sem a devida resposta de parte da sociedade. A Dra. Luciana Gatti, uma das mais experientes cientistas do Brasil, com grande reconhecimento nacional e internacional, apenas reiterou à imprensa o que é largamente sabido: o histórico de importante parte do setor do agronegócio tem sido promover desmatamento e queimadas de florestas, matas, vegetação nativa e até áreas protegidas, como bem o comprova o contínuo monitoramento por satélite. Como sempre, esse setor do agronegócio e seus porta-vozes políticos valem-se da velha tática de imputar às vítimas e aos acusadores a autoria dos próprios crimes. 

Vimos a público, através desta moção, prestar solidariedade à Dra. Luciana Gatti, uma das maiores autoridades internacionais em ciência do clima na Amazônia, e repudiar os insultos proferidos pelo atual secretário da agricultura do estado de São Paulo. Os cidadãos brasileiros e de todo o mundo precisam dar um basta a um modelo econômico que não produz alimentos, mas commodities agrícolas infestadas de agrotóxicos proibidos nos países que os fabricam e que estão cada vez mais envenenando o povo brasileiro. Precisamos de uma lei proibindo totalmente o uso de fogo na agropecuária brasileira. Precisamos dar um basta à destruição da natureza, de que somos todos dependentes e parte integrante. Não podemos mais tolerar uma atividade eivada de crimes, mas patrocinada por parcelas majoritárias do Poder Legislativo e altamente subsidiada pelos nossos impostos através de financiamentos públicos e incentivos e isenções fiscais. É preciso escolher, aqui e agora, entre a impunidade e a salvaguarda de nosso presente e de nosso futuro.

Metade das plantações queimadas em agosto em SP pegou fogo no mesmo dia, FSP

  

Franca (SP)

Técnicos e executivos representantes de 2.000 produtores de cana-de-açúcar ainda analisavam, no final da noite desta quarta-feira (25), dados de satélite para medir a cicatriz deixada pelas queimadas nas plantações do estado de São Paulo. O relatório apresentado nesta quinta (26) tenta explicar uma situação climática extrema que em um único dia potencializou incêndios em áreas que, somadas, equivalem a mais de duas vezes o território da capital paulista.

Dos 658,6 mil hectares de plantações queimadas em agosto no estado, 328,2 mil hectares pegaram fogo no dia 23 do mês. Isso significa que metade da área plantada atingida foi incendiada em um único dia, segundo o levantamento da Canaoeste, a associação dos plantadores de cana do oeste paulista.

Imagem aérea mostra plantação amarelada e, entre as plantas, é possível ver o chão coberto com cinzas
Canavial atingido pelo fogo na zona rural de Altinópolis, no interior paulista - Zanone Fraissat/Folhapress

A marca do fogo analisada não faz distinção em culturas agrícolas, mas o segmento afirma que praticamente todas as cidades que registraram 100 ou mais focos estavam em áreas cuja principal produção é a de cana-de-açúcar.

Pitangueiras foi a cidade com mais focos, 354. Sertãozinho, com 296, e Altinópolis, com 252, também estão no topo da lista de municípios mais atingidos.

São Paulo registrou 11.628 focos de incêndios em agosto, número 227% maior do que a média histórica para o mês, que é de 3.550 focos. É também o maior número de focos já registrados no mês, superando os 8.076 de 2021. O levantamento tem dados desde 2012.

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Análises climáticas da entidade apontam como principais fatores para o espalhamento do fogo os ventos de até 45 km/h, umidade do ar a 8% e calor de 30ºC, disse à Folha o gestor executivo da Canaoeste, Almir Aparecido Torcato, enquanto analisava os dados em apuração na terça (24).

"Uma condição climática que preocupa muito para o risco de incêndios é a chamada ‘triplo 30’, quando o vento está acima de 30 km/h, a umidade abaixo de 30% e a temperatura supera os 38ºC", explica. "Os dados estão mostrando uma situação extrema de triplo 30", comenta.

Apesar de extremos, os eventos climáticos de 23 de agosto não seriam capazes de, sem a intervenção humana, promoverem queimadas na proporção observada, afirma Torcato.

Com base na experiência das equipes agronômicas que rotineiramente vão a campo analisar o solo de áreas queimadas, ele diz que muitos incêndios acidentais são provocados por hábitos como incinerar lixo ou mato em chácaras, rituais religiosos, e ainda pela ação de criminosos que usam fogo para derreter o revestimento de fios roubados em propriedades rurais.

Na atual crise, porém, indivíduos ateando fogo propositalmente em matas e plantações também entram para a lista de suspeitos, principalmente devido à velocidade com que os focos surgiram.

"Há pessoas que sentem prazer em destruir patrimônio público e privado, vândalos, que tiveram suas ações extremamente potencializadas pelo clima", diz Torcato. "A motivação dessas pessoas é uma incógnita, penso na teoria da janela quebrada: alguém vê uma vidraça quebrada num prédio e se sente estimulado a apedrejar outras vidraças, mas não consigo ver, objetivamente, uma ação organizada", comenta.

Passado o ápice da crise, o setor diz esperar respostas das autoridades para encontrar os responsáveis enquanto tenta se preparar para uma condição climática que poderá ser mais frequente. Além disso, tenta demonstrar para a sociedade que está entre os segmentos mais prejudicados pelos incêndios.

Desde 2014 a produção de cana não utiliza fogo para queimar a palhada e facilitar a colheita manual da cana em São Paulo. Produtores usam colheitadeiras mecânicas que dispensam a necessidade de fogo. Além disso, a palhada deixada sobre o solo preserva nutrientes para a safra seguinte.

Caso fosse queimada, como no passado, a cana ainda enfrentaria rejeição das usinas, pois prejudica o processamento para a produção de açúcar e desvaloriza o produto, segundo o executivo da Canaoeste.

"Sem vitimismo, se ao menos fôssemos respeitados, e não rechaçados, já nos facilitaria a vida", diz Torcato.